Sâmia Bomfim sobre incêndio no Paissandu: A ‘arquitetura da gentrificação’ fez novas vítimas
O 1º de Maio em São Paulo foi marcado por uma tragédia que nos fez lembrar da importância da luta pelos direitos básicos dos trabalhadores. O Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo Paissandu, desabou após intenso incêndio ocorrido na madrugada, deixando centenas de pessoas desabrigadas e cinco desaparecidas (ainda não há confirmação de mortos).
Inaugurado em 1966, o edifício foi tombado em 1992 como bem de interesse histórico, arquitetônico e paisagístico mas foi totalmente abandonado em 2001. De posse da União, o edifício foi provisoriamente cedido à Prefeitura ano passado para que servisse como sede da Secretaria de Educação e Cultura do município. Atualmente era ocupado pelo movimento em defesa do direito a moradia, LMD (Luta por Moradia Digna). A centenária Igreja Luterana que ficava ao lado – outro patrimônio histórico – também foi quase completamente destruída.
Ficamos todos consternados com as cenas dantescas do edifício em chamas onde precariamente abrigavam-se algumas das milhões de pessoas a quem esta cidade renega o direito de morar. Estes batalhadores terão novamente de tentar um recomeço e nosso apoio é quase um dever moral – tanto prático, por meio de doações que estão sendo recebidas por pastorais da região, quanto político. Nesse sentido, é preciso compreender o contexto em que esta tragédia se insere, tanto para que se reverta tamanha injustiça, quanto para que a “arquitetura da gentrificação” não faça mais vítimas.
O Centro abandonado
Primeiramente, é preciso fazer um resgate histórico sobre a formação do centro de São Paulo.
Como em várias outras capitais brasileiras, o centro de São Paulo já foi a localização preferida das elites, como testemunham alguns palacetes e outras construções suntuosas que ainda restam na região. Entretanto, seguindo o que Raquel Rolnik descreve como a lógica de desenvolvimento como expansão da “fronteira”, a elite paulistana já no final do século XIX começa a fugir da agitação do centro dessa jovem metrópole para residir no ambiente bucólico dos bairros intensamente arborizados e tranquilos, como Jardins, Pacaembu e Higienópolis.
Ao longo das décadas, esse processo resultou na desvalorização da região. Ao mesmo tempo, as sedes das grandes empresas e centros financeiros mudaram-se para as avenidas Paulista, Faria Lima e, posteriormente, Marginal Pinheiros. O próprio Estado seguiu esta tendência de deslocamento para o eixo sudoeste, como atesta, por exemplo, a mudança da sede do governo estadual do Palácio dos Campos Elíseos para o Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, em 1964.
Com a desvalorização do centro e valorização da região sudoeste, os novos empreendimentos imobiliários também partiram para esta última. E uma vez que o mercado de imóveis para classe média é restrito, a construção de novos empreendimentos em regiões como Pinheiros, Vila Mariana e Morumbi, mais valorizadas, deixou para trás um rastro de imóveis desocupados no centro. Como índice desse fenômeno, podemos observar o caso da subprefeitura da Sé: em 1980, havia cerca de 520 mil habitantes na região; em 2002, eram apenas 355 mil.
Dessa forma, a partir do final do século XX o cenário desta região estava completamente modificado. O abandono do centro pelas elites criou locais completamente ermos (como a assim chamada pejorativamente “Cracolândia”) ou de baixa circulação após o expediente, o que os tornaram mais violentos e degradados. Este era exatamente o caso do Edifício Wilton Paes de Almeida: um prédio outrora suntuoso, abandonado em uma região degradada e perigosa durante a noite.
Entretanto, contraditoriamente, o centro é uma das melhores regiões em termos de infraestrutura urbana: possui uma rede completa de luz, água, esgoto e comunicação; acesso a equipamentos públicos de saúde, educação e cultura; oportunidades de emprego; acesso privilegiado ao transporte público.
De acordo com dados apontados por Rolnik em 2006, boa parte dos 400 mil imóveis vagos em São Paulo estavam localizados em regiões centrais, com boa infraestrutura urbana. Ou, como apontam dados mais recentes apontados pelo Estadão, pelo menos 907 imóveis da cidade – ou 2 milhões de metros quadrados, o equivalente a toda Heliópolis – não cumprem sua função social e estão passíveis de desapropriação, a maioria no centro. É verdadeiramente incrível que uma região como essa tenha tantos imóveis abandonados. Ainda mais se considerarmos o gritante déficit habitacional da cidade – 396 mil famílias.
Ou seja, milhões de pessoas não têm acesso ao direito constitucional de moradia digna enquanto imóveis encontram-se desocupados nas melhores regiões da cidade. É responsabilidade do poder público corrigir esta injustiça. O que os ocupantes fazem é exigir isso.
O Estado, no entanto, tem agido com hostilidade em relação às pessoas que lutam por esse direito, como observamos nas várias cenas de reintegração de posse violenta dos imóveis ocupados executadas pela Polícia Militar. Infelizmente, o mesmo espírito esteve presente nas declarações dos governantes de São Paulo. Tanto Márcio França quanto Bruno Covas deram a entender que a responsabilidade pela tragédia era das próprias vítimas que ocuparam um imóvel em condição precária. O governador foi adiante, e sugeriu que o Ministério Público deveria parar de barrar pedidos de reintegração de posse violenta.
Como afirmou Guilherme Boulos, pré-candidato a presidente pelo PSOL, em vídeo de solidariedade: “Ninguém vai para um ocupação porque quer. As pessoas ocupam por completa falta de alternativa. Se há algum responsável, é o poder público que não assegurou moradia para essas pessoas.” Ou seja, sem dúvidas ninguém deveria habitar em um prédio inseguro. Se os tucanos pensam assim, deveriam então cumprir seu papel e garantir moradia digna e não simplesmente exigir que as pessoas se retirem das ocupações sem ter para onde ir.
Já João Doria, como sempre, foi além com seu preconceito elitista e afirmou (absolutamente sem provas ou indícios) que a ocupação era controlada por traficantes de drogas. O que ele pretende com isso: desencorajar nossa solidariedade já que ali só haveria – parafraseando Coronel Ubiratan, o carniceiro do Massacre do Carandiru – bandidos? A afirmação é cínica uma vez que Doria congelou 51% do orçamento previsto para a habitação durante seu mandato-trampolim.
Sua única política para habitação foi o “aluguel social” que pouco faria para resolver o problema (uma vez que apenas mil famílias seriam atendidas) e na verdade mirava apenas a reativação do setor imobiliário em crise desde 2014. Não deixa de ser irônico, aliás, que a Justiça em 2016 tenha exigido que Doria devolvesse a área pública que ele invadiu em Campos do Jordão.
O Centro “revitalizado”
Mas ainda é preciso ir adiante na leitura do ocorrido. Esse conjunto de absurdos não é mera consequência da irracionalidade do nosso sistema. Eles estão calcados em interesses muito poderosos.
Antes é necessário apresentar o conceito de “gentrificação”. Este termo vem do inglês gentry, que significa “gentio”, “de origem nobre” e foi utilizado pela primeira vez em Londres, na década de 1960, quando antigos bairros operários passaram a ser ocupados por imóveis caros e moradores ricos, o que acarretou na disparada no valor dos aluguéis e expulsão dos antigos moradores para outras regiões.
De maneira geral, o processo ocorre da seguinte forma: há uma determinada região onde os imóveis, por alguma razão, são desvalorizados; os proprietários destes imóveis os mantém desocupados esperando por uma valorização no futuro e para que o excesso de oferta não faça cair os preços de seus outros imóveis na cidade; o poder público investe em projetos de “revitalização” que valorizam a região; os proprietários, então, lançam esses imóveis no mercado a um valor muito superior ao investido nele; a população pobre, não podendo pagar os novos preços, é obrigada a migrar. Dessa forma, o direito à cidade estaria na proporção direta do poder econômico: as melhorias promovidas pelo investimento público nas regiões pobres, ao invés de beneficiar a população que dela necessita, acaba por expulsá-la favorecendo o capital especulativo.
No caso do Brasil, esse processo assume ainda a característica perversa da divisão entre moradias “legais” ou “regulares” e “ilegais” ou “irregulares”. As moradias “regulares” apresentam todos os pré-requisitos necessários para uma habitação digna e segura e estão devidamente regulamentadas nos órgãos jurídicos. Mas, por isso mesmo, são mais caras.
Já as “irregulares” – como o edifício do qual estamos tratando aqui – estão em zonas de risco, sem infraestrutura adequada, e seus moradores não têm a posse ou direito de locação judicialmente garantidos. Por isso mesmo seu custo é quase nulo – são construídas autonomamente pelos moradores em regiões vazias (como no caso das favelas) ou ocupadas (como no caso do edifício).
Dessa forma, a população que habita essas regiões encontra-se num perverso paradoxo legal: são vítimas do Estado por não possuírem o direito constitucional à moradia mas são culpabilizadas por habitarem uma moradia “irregular”. É desse paradoxo que surgem discursos como os citados acima ou como os que a grande mídia profere toda vez em que há um desabamento ou enchente em uma zona de risco.
Além disso, a gentrificação ocorre muitas vezes de forma violenta e até mesmo criminosa. Em 2012, diversas favelas em São Paulo foram incendiadas deixando centenas de pessoas desabrigadas. Coincidência ou não, todas elas em regiões de crescente valorização. Favelas que existiam há anos e que no passado tinham condições muito mais perigosas (como paredes de madeira) mas que foram incendiadas justamente naquele ano. Uma CPI foi aberta na época para investigar tamanha coincidência, mas foi encerrada sem ouvir nenhum depoimento.
É preciso uma investigação séria e rigorosa sobre o incêndio do Edifício do Largo Paissandu, pois ele pode fazer parte do processo de gentrificação do centro. A região estaria passando por um processo de revalorização para criar um novo eixo de acumulação para a especulação imobiliária, e a expulsão da população pobre seria parte disso.
Para notar isso, basta olhar para a região da Luz e Campos Elísios, a assim chamada “Cracolândia”. Em 2005, Serra e Kassab apresentaram o projeto de valorização e atração de negócios para a Luz, o “Nova Luz”. As prometidas melhorias não saíram do papel, mas a gestão Kassab utilizou a violência policial para realizar desocupações forçadas e dispersão das pessoas em situação de rua que ali viviam. Já no início de 2017, foi a vez de Doria “acabar com a Cracolândia” por meio da truculência policial e do atentado aos direitos humanos, chegando ao ponto de demolir casas com pessoas dentro!
Atualmente, os habitantes da região ainda convivem cotidianamente com ameaças de despejo e violência policial. Tudo isso ao mesmo tempo em que não param de surgir projetos de “revitalização” da área, como a reinauguração do Palácio Campos Elíseos ou a proposta de privatização do Terminal Princesa Isabel. Ora, a “revitalização” pressupõe a expulsão de quem mais necessita dela?
Mas o caso da “Cracolândia” é apenas um exemplo. A gentrificação em São Paulo é um processo muito mais amplo que está sintetizado na nova Lei de Zoneamento proposta pela gestão do PSDB. A Lei de Zoneamento do município apresenta as diretrizes e regulamentos para a ocupação do território urbano e deve estar de acordo com o Plano Diretor Estratégico (PDE).
A última Lei de Zoneamento é de 2016 e o PDE é de 2014, com vigência até 2030. Mas, mesmo sendo tão recentes, os tucanos pediram a revisão da Lei de Zoneamento argumentando que ela teria sido promulgada em momento de bonança para o mercado imobiliário que agora, entretanto, estaria em crise. Sim, a justificativa não é o direito à cidade, mas o interesse econômico das empreiteiras e construtoras.
Em síntese, o projeto prevê a desoneração dos novos empreendimentos – os recursos os quais a prefeitura abriria mão seriam justamente para a promoção de moradia popular. Além disso, favoreceria a verticalização dos imóveis e permitiria a construção de apartamentos maiores (e mais caros) no centro. Ou seja, a nova Lei de Zoneamento, se aprovada, deve liberar o centro para ser um novo eixo de acumulação da especulação imobiliária.
Sem dúvida alguma, o centro precisa urgentemente ser reformado para que haja o exercício ativo do direito à cidade não só por parte da população que ali reside e trabalha mas para todos os paulistanos. Da mesma forma, o enorme contingente de pessoas em situação de rua ou em habitação inadequada precisa de atendimento. Mas nada disso passa pelos hipócritas processos de higienização travestidos de “revitalização”.
Solidariedade às vítimas, exigências ao poder público
Nosso mandato tem feito forte oposição a esse mecanismo de gentrificação. Além disso, temos atuado para exigir o direito à moradia digna. Durante a CPI da Mulher, soubemos por documentos do Ministério Público que a Prefeitura não havia cumprido sua obrigação de garantir moradia para mulheres em situação de violência e que necessitam de medida protetiva. Em função disso, há dois meses encaminhamos um requerimento de informação ao SEHAB (órgão da Prefeitura responsável pela habitação) sobre a disponibilização dessas moradias e sobre o Plano Municipal de Habitação. Até agora não obtivemos resposta.
Seguiremos cobrando que o poder público cumpra sua responsabilidade constitucional. Além disso, exigimos investigação sobre o ocorrido e devida assistência às famílias desabrigadas. Convocamos todos a se somarem nessa luta e prestarem solidariedade às vítimas. Há postos de recebimento de doações na Ocupação Mauá (Rua Mauá, 340), na Paróquia da Santa Ifigênia (Rua Santa Ifigênia, 30) e na Ocupação Luana Barbosa (Rua Dr. Augusto Miranda, 22).
Por Sâmia Bonfim, vereadora em São Paulo pelo PSOL, atualmente a parlamentar mais jovem a exercer o mandato na capital. Formada em Letras pela USP.
Fonte: Mídia Ninja