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Sakamoto: Aos juízes, auxílio-moradia; aos Sem-Teto, bombas

Fonte:UOL/ Blog do Sakamotto

Por Leonardo Sakamoto

Jornalista expõe diferentes tratamentos recebidos por membros do judiciário e movimentos sociais quando reivindicam direito

Indígena tenta impedir reintegração de posse. Foto vencedora do Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos. Luiz Gonzaga Vasconcelos, Jornal A Crítica (2008).

O juiz Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato, recebe auxílio-moradia apesar de possuir um imóvel próprio de 256 m² em Curitiba, conforme relatou Ana Luiza Albuquerque, na Folha de S.Paulo desta sexta (2). Para garantir o valor de R$ 4378,00 mensais, ele se aproveitou da sempre recorrente decisão liminar de Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, que estendeu o benefício – que já era pago por alguns tribunais – a todos os juízes do país. Segundo o ministro, não fazer isso manteria uma diferenciação entre os magistrados. O recebimento não é automático e depende de solicitação individual.

Gosto dessa ideia de combater a diferenciação de tratamento entre aqueles que são iguais. Afinal se todos os brasileiros são iguais perante à lei, devem ter acesso ao mesmo direito, não é mesmo?

O artigo 6º da Constituição Federal afirma que a moradia é um direito social de todos os brasileiros. Mas, infelizmente, nem todos os brasileiros têm acesso à moradia. De acordo com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), há um déficit de 500 a 700 mil unidades habitacionais apenas em São Paulo. E, no Brasil, o buraco seria de 6,2 milhões.

Porém, quando brasileiros buscam a efetivação do seu direito, protestando por políticas de habitação com condições mais acessíveis de financiamento ou ocupando imóveis vazios para obrigar o poder público a se mexer, são carinhosamente tratados pela polícia com bombas, balas de borracha e cassetetes. Que, muitas vezes, são consequência de ordens judiciais.

O inciso IV, do artigo 7º, da mesma Constituição, afirma que o salário mínimo deveria ser capaz de garantir alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte, previdência social e, claro, moradia para uma família de quatro pessoas. Em valores de hoje, segundo cálculo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), isso demandaria R$ 3585,05 mensais.

Bem menos, portanto, que o auxilio-moradia pago aos magistrados individualmente.

O Brasil tem dispendido injustificável tratamento diferenciado (para pior) a uma parcela de sua população que se vê obrigada a morar em casas sem a mínima segurança ou dormir ao relento em comparação a benefícios concedidos para algumas categorias, como as de magistrados e políticos.

Como o país não tem sido competente em garantir um piso de salário que permita a todos os cidadãos pagarem por um teto digno, deveria melhorar seus programas de habitação popular, principalmente aqueles voltados aos grupos mais vulneráveis. Imagine o incremento nessa política que seria se fosse destinado um valor equivalente aos auxílios-moradia dos que ganham bem à construção de casas populares de forma a acabar com um ”injustificável tratamento diferenciado” entre os brasileiros mais pobres e sua elite de funcionários públicos. Pode soar populista, mas serve como ponto de partida para a reflexão.

Afinal, há direitos e direitos. E o direito fundamental de não dormir na rua deveria ser prioridade em relação a muitos outros. Alguns vão alegar que não se resolve uma injustiça cometendo outra. Resolver não resolve porque, para zerar o déficit habitacional, precisaríamos de vontade política, contornar as reconhecidas limitações econômicas e acabar com o ralo da corrupção na construção civil. Mas se não resolve, pelo menos é um bom indicativo de que privilégios não seriam mais tolerados.

A desigualdade é nociva porque dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Ao mesmo tempo, há a percepção (correta) de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres – ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for.

Enquanto a presidente Cármen Lúcia, não levar a liminar concedida por Fux que libera o auxílio-moradia a todos os magistrados brasileiros à discussão no plenário do Supremo Tribunal Federal, nenhum juiz deveria assinar uma reintegração de posse sequer de qualquer imóvel ou terreno ocupado por sem-teto e de qualquer área ocupada por indígenas ou outras populações tradicionais que as reivindiquem.

Isso não seria uma afronta à ordem jurídica, mas uma mera questão de reciprocidade.