Retrocesso na Saúde | SP barra PL de atendimento humanizado a casos de aborto legal
O aborto é proibido e penalizado no Brasil, salvo casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mãe e em casos de anencefalia.
Na noite de quarta-feira (20) durante uma votação na Câmara dos Vereadores de São Paulo, foi derrubado regimentalmente o Projeto de Lei nº 120/2017, que instituía um programa de atenção humanizada à mulheres que passarem pelo procedimento de aborto legal em casos de gravidez decorrente de violência sexual, risco de vida da mãe e anencefalia. A autoria do PL é das vereadoras Sâmia Bomfim e Isa Penna do PSOL. Segundo o vereador Fernando Holiday (DEM), que manobrou a derrubada, o projeto relativiza e incentiva a realização de abortos.
O aborto é proibido e penalizado no país, porém desde 1940 ele é permitido por lei em casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mãe e após uma decisão do STF de 2012, em casos de anencefalia. Nesses casos, as mulheres não só podem realizar o procedimento, como também deverão ser atendidas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o número de abortos legais feitos no SUS são tímidos perto do número de procedimentos clandestinos e muito disso se deve à falta de informação da sociedade e dos próprios profissionais da saúde no sistema público, além da precariedade estrutural.
No Brasil, o aborto clandestino é uma das maiores causas de mortalidade materna.
O PL, dentre outras diretrizes, prevê também estender a realização do procedimento do aborto legal à Unidades Básicas de Saúde (UBS) e outros locais da saúde pública municipal de São Paulo prezando pelo “acolhimento, orientação e atendimento clínico adequado, segundo referenciais éticos, legais e bioéticos, prezando pela saúde da mulher”. Segundo a vereadora Penna, foi um PL oferecido em 2017 após a sugestão e desejo da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, de montar uma bancada feminista do PSOL e também batalhar pelo atendimento digno de mulheres que passam pelo procedimento nos casos previstos em lei.
“Hoje só temos quatro hospitais em São Paulo que fazem esse tipo de procedimento,” afirma Sâmia Bomfim à Vice Brasil. “A ideia é que esse serviço fosse ampliado para todo o sistema de saúde e inclusive para as UBS. Tem muita mulher que não sabe que tem esse direito e se submete por uma série humilhações quando precisa interromper uma gravidez dentro dessas hipóteses legais. Uma das ideias do PL é garantir que houvesse divulgação e acolhimento seguro para elas.”
No Brasil, o aborto clandestino é uma das maiores causas de mortalidade materna.
“[A interrupção da gravidez em casos previstos pela lei] É um procedimento simples, se feito até o terceiro mês. Ele é realizado por meio de medicamentos e não por intervenção cirúrgica como muita gente acredita. Então, sim, por isso que tem que estender às UBS para inclusive não sobrecarregar os hospitais municipais. Na maior parte dos casos não há risco”, afirma Isa Penna.
O projeto, no entanto, foi derrubado após um requerimento regimental do vereador Fernando Holiday (DEM) durante uma sessão na Câmara dos Vereadores. Nas redes sociais, o vereador chamou o projeto de “Aborto Legal”, confundindo alguns internautas de que o projeto se tratava da legalização do aborto em todas as hipóteses. Em entrevista à Vice Brasil, Holiday afirma que o PL incentiva o aborto porque supostamente não permite os funcionários da rede de saúde pública aconselharem a mulher a não seguir com o procedimento ou não o realizarem por questões de consciência.
Com o apoio de vereadores de diversos partidos, aprovei na @camarasaopaulo um requerimento que derrubou o PL 120/17 do @psol50 que instituia o programa “Aborto Legal” na cidade. Mais um projeto que incentivava o assassinato de crianças.
— Fernando Holiday (@FernandoHoliday) 21 de junho de 2018
“O projeto em nenhum momento prevê um atendimento, digamos, livre a essas mulheres. O PL amarra os funcionários da saúde e obriga eles a realizarem o procedimento sem poder questionar a mulher para que ela reflita sobre essa decisão. Ele obriga o profissional a realizá-lo e, consequentemente , incentiva o aborto”, diz.
O vereador fez referência ao inciso IV do artigo 5º do PL em que estabelece uma garantia “do atendimento ético pelo profissional de saúde, evitando que aspectos sociais, culturais, religiosos, morais ou outros interfiram na relação com a mulher”. Para Holiday, o inciso somado com o art. 10º do mesmo PL quer obrigar que todo profissional da saúde a fazer o procedimento mesmo isso sendo contra sua consciência. “O projeto, digamos, quer obrigar todas as redes de saúde do município a realizarem esse procedimento mesmo contra a liberdade de consciência do servidor público que, repito, é uma garantia.”
De fato, há a previsão da chamada “objeção de consciência” em que Holiday faz referência no Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, entretanto o próprio estatuto estabelece ressalvas dessa objeção em caso de “situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.
As diretrizes do Ministério da Saúde quanto a um médico ou profissional que não queria realizar o aborto legal também exigem que haja a indicação de outro médico que possa fazer o procedimento. “O Estado, independente da sua consciência individual do servidor público, é laico. As atividades dos servidores são regidas sobre as leis federais e o médico que está no hospital público tem que seguir as diretrizes estabelecidas por lei”, contesta a vereadora Penna.
Além da objeção de consciência defendia por Holiday, o vereador também afirma que não há um atendimento psicológico adequado para convencer a mulher a não seguir com o procedimento. “(…) o Estado falha muito no atendimento dessas mulheres, principalmente no atendimento psicológico. Se fosse realmente realizado na rede pública poderia evitar muitos casos de aborto desses previstos em lei e até mesmo abortos clandestinos, mas falta atendimento às mulheres que desejam abortar. Porque muitas delas acabam tendo consequências psicológicas pós-traumáticas após o atendimento.”
O vereador também afirma que já há locais aos quais as mulheres podem recorrer. “O município já tem unidades especificas que já podem realizar esse tipo de procedimento e já existem profissionais capacitadas sem objeções de consciência contra isso”, diz. O município de São Paulo possuía cinco hospitais que realizavam os procedimentos em casos de aborto legal. O Hospital Saboya, na Zona Sul, foi um dos pioneiros no atendimento de abortos previstos em lei, mas deixou de oferecer esse serviço em 2017.
Em um levantamento de 2016 feito pela ONG Artigo 19 para a cartilha Acesso à informação e direito das mulheres, apenas 71 hospitais oferecem esse procedimento no país. Em estados onde a incidência de violência sexual é altíssima, como Roraima, por exemplo, não há nenhum lugar para a mulher recorrer.
Para Penna, o objetivo do PL é justamente impedir que questões pessoais interfiram no corpo de mulheres cujo direito de interromper a gravidez está garantido em lei. “Acho que existe uma confusão que é muitos funcionários da saúde fazem uma pressão psicológica sobre ela para que ela mude de ideia por conta de concepções religiosas e por aí vai. A nossa preocupação é que isso não aconteça. Agora, evidente que se o hospital tiver uma psicóloga à disposição, coisa que não existe, essa funcionária que tem capacitação e qualificação pra conversar com a mulher para que ela esteja certa da decisão dela. O funcionário da saúde não tem essa prerrogativa.”
Puxando para as questões regimentais, Bomfim afirma que Holiday deu um “golpe” no PL ao pedir ao presidente da sessão de quarta-feira que colocasse o projeto em “pé de pauta”, ou seja, colocar em votação mesmo que ele não esteja na ordem do dia. Segundo Sâmia, a votação do dia anterior foi de honrarias e de projetos que pedem, por exemplo, nomeação de ruas e que ela mesma não havia colocado o projeto para votação.
Com o plenário esvaziado e com a presença de poucos vereadores, Holiday derrubou o PL ao pedir para que fosse votada a discordância dele. O mérito não foi discutido, manobra considerada “desleal” pela vereadora. “O projeto não estava em pauta e os vereadores não sabiam que isso seria votado”, afirma.
Um dos poucos vereadores presentes na votação, o vereador Reis (PT) registrou o voto contrário à derrubada do PL. Segundo sua assessoria, a manobra de Holiday em colocar em pauta um projeto de lei que não é de sua autoria e sem avisar a Sâmia “não condiz com as práticas da Casa”. A assessoria ainda frisa que o vereador não é contra o projeto e, inclusive, foi relator do mesmo numa Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Holiday se defende dizendo que agiu conforme o regimento. “Esta foi a primeira sessão em algum tempo em que projetos de vereadores estavam sendo votados. Pelo modo que ele [o Pl 120/17] foi aprovado sem a discussão necessária, sim, tinha uma urgência porque ele poderia passar no plenário a qualquer instante. Era urgente que ele fosse derrubado”, justifica.
Penna e Sâmia, no entanto, afirmam que irão recorrer a manobra do vereador — conhecido também pela oposição às duas políticas. “Eu vou recorrer, tem que recorrer porque é um projeto sério. Não é uma besteira”, diz Bomfim.
Por Marie Declercq
Fonte: Vice Brasil