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PMs matam e recolhem cadáver por conta própria, mas são denunciados por legista

Policiais militares ignoram civis e tentam investigar os homicídios cometidos pela própria corporação; ‘Isso demonstra o total descontrole em que está a PM de SP’, afirma desembargadora

Caso aconteceu em Tarumã, interior de SP | Reprodução/TV Tem

Imagine a cena. Policiais militares chegam ao IML (Instituto Médico Legal) de uma cidade do interior com o corpo de um homem. Dizem ao médico legista que se trata de um ladrão e estuprador, morto após resistir a uma abordagem policial feita no meio de uma rodovia. Os PMs mostram um documento ao legista e cobram dele um exame necroscópico para um inquérito em que a própria PM vai investigar a conduta dos seus homens. Isso aconteceu no último domingo (24/6), na cidade de Tarumã, na região oeste do estado de São Paulo.

A morte de Edenilson de Oliveira Camargo, 27 anos, negro e natural de Osasco, na Grande São Paulo, veio à tona somente porque o médico legista — que terá o nome preservado por segurança — estranhou a situação e fez um Boletim de Ocorrência de “morte decorrente de oposição à intervenção policial”, denominação para as mortes cometidas por policiais, no 4º DP da cidade vizinha de Assis. Só isso evitou que a morte de Edenilson ficasse de fora das estatísticas criminais.

Ao pedir a realização do exame necroscópico, os PMs apresentaram um documento com assinatura do tenente Milton Lúcio de Carvalho Júnior, que apontava como participantes da ocorrência os policiais Alessandro Lusvardi, Márcio Roberto da Silva, Sérgio Augusto Lebrão e Álvaro Francisco da Silva. No documento, pediam que o IML apontasse a causa da morte e coletasse material genético do homem, que “estaria diretamente envolvido no crime de roubo/estupro”.

“Jamais poderiam ter mexido no local do fato, muito menos ter retirado o cadáver e entregue para ser periciado no IML. Nunca se assistiu no estado de São Paulo uma situação dessa. Isso demonstra o total descontrole em que está a PM de SP”

Conforme o registro da ocorrência, os PMs alegaram ao médico legista que não apresentariam o caso à Polícia Civil “em razão de Portaria institucional que, supostamente, autorizaria a investigação pela própria corporação”. O delegado Gustavo Barbosa de Siqueira, que assina o boletim, aponta que não se dirigiu ao local do crime pois a “Polícia Militar não apresentou a ocorrência para registro em nenhuma delegacia da Polícia Civil”.

Segundo especialistas ouvidos pela Ponte, não existem portarias da PM que autorizem os policiais a omitirem mortes como a de Camargo da Polícia Civil. Há, contudo, a tentativa de fazer com que uma lei criada especificamente para militares das Forças Armadas passe a ser válida para as polícias militares estaduais.

Sancionada pelo presidente Michel Temer (MDB) em outubro de 2017, a lei 13.491/2017 passou para a Justiça Militar o julgamento de militares que matarem civis durante ações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) ou em casos de intervenção, como a que ocorre na pasta da Segurança Pública do Rio de Janeiro, em que militares têm poder de polícia.

Local onde os PMs apontam que o homem resistiu à abordagem | Reprodução/Google Street View

Para justificar a transferência do caso dos policiais para a Justiça Militar, a PM de SP recorre à uma interpretação controversa desta lei federal. A corporação, porém, considera que a lei também se aplica aos policiais militares.

Esta interpretação foi usada para tirar da vista da Justiça comum o julgamento de 11 PMs pegos com kits flagrantes em seus batalhões. Eles eram investigados por maquiar ou acobertar policiais envolvidos em uma execução. Em vistoria nos seus alojamentos, a Corregedoria da PM encontrou armas de brinquedos, porções de drogas e outros itens nos armários dos investigados.

A corporação foi acusada de não repassar à Polícia Civil investigações de três mortes causadas por sua tropa em abril de 2017 na cidade de São José do Rio Preto. O MP instaurou inquérito para apurar o caso.

Casos envolvendo PMs em crimes dolosos contra a vida de civis, ainda que no exercício das funções, seguem com competência da Polícia Civil investigar e da Justiça Comum julgar, conforme sustenta a desembargadora de Justiça de São Paulo, Ivana David, que atua há 30 anos na justiça criminal.

“O crime não é um crime militar, é de competência da justiça comum. A nova lei que indicam como sendo de passar para a justiça militar o crime envolvendo mortes de civis não se aplica à Polícia Militar, se aplica somente às Forças Armadas em função de Polícia Militar. Não tem nada a ver”, critica a magistrada.

Documento apresentado pelos PMs ao médico legista | Arquivo pessoal

Para Ivana, os PMs Alessandro Lusvardi, Márcio Roberto da Silva, Sérgio Augusto Lebrão e Álvaro Francisco da Silva cometeram crime ao não apresentar o caso à Polícia Civil. “Eles jamais poderiam ter mexido no local do fato, muito menos ter retirado o cadáver e entregue para ser periciado no IML. Nunca se assistiu no estado de São Paulo uma situação dessa. Isso demonstra o total descontrole em que está a PM de SP”, critica a desembargadora.

A alteração na lei feita por Temer fez com que algumas polícias militares brasileiras determinassem que a tropa não apresentasse mais as ocorrências com mortes à Polícia Civil. É o caso de Santa Catarina. O comando da corporação determinou que as apurações seriam feitas pela própria PM. Em seguida, a reação dos delegados de polícia fez a Justiça revogar a ordem dada à tropa. A interpretação foi de que, se há uma indefinição causada por esta suposta brecha na lei, vale o que já existia, no caso, a Civil investigando as mortes causadas por PMs e a Justiça Comum julgando.

“Isso gera uma insegurança jurídica tremenda para os PMs na rua, ficamos à merce da subjetividade. Tem jurista que considera certo e tem jurista que avalia como errado, sendo que o policial tem três segundos, quando tem, para pensar em como agir. Inevitavelmente, afeta o desempenho”, explica o sargento Elisando Lotin de Souza, da PM de SC e membro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

Outro lado

Procurada pela reportagem através de sua assessoria de imprensa terceirizada, a InPress, para avaliar a atuação dos policiais militares, a SSP (Secretaria da Segurança Pública de SP) explicou que, em casos de mortes durante uma ocorrência, a PM “deve seguir rigorosamente o disposto na Resolução SSP 40/15, que determina o comparecimento das Corregedorias e dos Comandantes da região, além de equipe específica do IML e IC. A resolução prevê também imediata comunicação ao Ministério Público”, aponta.

Sobre o caso específico de Tarumã, a pasta “esclarece que não compactua com desvios de conduta praticados por seus integrantes”, ainda segundo a nota. “O caso citado pela reportagem já está em investigação pela Corregedoria e foi instaurado inquérito policial militar (IPM) para apurar as circunstâncias dos fatos”, segue.

Por outro lado, a PM não respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem. A Ponte fez as seguintes perguntas:

O procedimento adotado pelos policiais militares está correto?

É comum a PM retirar o corpo de um morto em decorrência de intervenção policial da cena do crime? Caso sim, qual amparo legal para tal?

Os policiais alegam que o exame necroscópico seria utilizado no IPM nº 32 BPMI-007/13/18 de 24JUN18. Além deste exame, quais elementos constituiriam o IPM, sendo que a perícia do local da morte não seria possível pois a Polícia Civil foi informada do caso um dia depois se não tinha conhecimento da localização exata do caso?

Por qual motivo os PMs não registraram esta morte na delegacia local?

Desde 2013, PMs estão proibidos de prestarem socorro às vítimas de confrontos. Houve mudança nesta determinação? Caso sim, quando? Caso não, os PMs deste caso infringiram qual norma da corporação?

 

Por Arthur Stabile

Fonte: Ponte Jornalismo