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Em vitória histórica de quilombolas, STF declara constitucional decreto de titulações

Fonte: Instituto Socioambiental – ISA

Por 10 votos a 1, tribunal chancela Decreto 4.887. Decisão é derrota para governo Temer e ruralistas

Quilombolas comemoram decisão no STF | Carlos Moura / STF

Os quilombolas de todo o Brasil tiveram, hoje (8/2), no Supremo Tribunal Federal (STF), uma vitória histórica em defesa de seu direito à terra. Já o governo de Michel Temer, a bancada ruralista, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) sofreram uma derrota igualmente importante.

Por 10 votos a 1, os ministros declararam constitucional o Decreto 4.887/2003, que regulamenta a oficialização dos quilombos e é considerado um avanço no reconhecimento do direito à terra dessas populações.

Em 2012, o ministro Cézar Peluso acatou integralmente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239 contra a norma, proposta pelo DEM, em 2003. Peluso foi o relator do caso e já se aposentou. Em agosto, Dias Toffoli considerou o decreto constitucional, mas acolheu parte dos argumentos do partido. Hoje, Gilmar Mendes seguiu a mesma posição. Os três defenderam a aplicação do “marco temporal” às titulações, tese ruralista pela qual só deveriam ter direito ao seu território comunidades que estavam em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Afinal, foram voto vencido – seis ministros manifestaram-se expressamente contra o “marco temporal”: Rosa Weber, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Celso de Melo.

Vários deles repetiram que o “marco temporal” desconsidera o histórico de violências e remoções forçadas sofrido pelos quilombolas e que muitas comunidades não têm ou tiveram condições de entrar com ações judiciais em defesa de suas terras, de provar que foram expulsas ou que enfrentaram conflitos por causa delas, como determina a versão da tese defendida pelos ruralistas.

Em aparte aos colegas, Toffoli tentou convencer o plenário de que o “marco temporal” não prejudicaria os quilombolas. Afinal, não teve sucesso. A ministra Rosa Weber disse que irá retirar de seu voto, proferido em 2015, a citação à tese. Isso sacramentou a decisão de rejeitá-a, já que Weber abriu a divergência com o relator e sua posição foi acompanhada pela maioria dos ministros.

“Este é um primeiro passo no reconhecimento da dívida que o Estado brasileiro tem com os quilombolas, assim como também tem com os indígenas”, ressaltou, emocionado, ao final do julgamento, Denildo Rodrigues, o Biko, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ele cobrou que o governo não apenas avance nas titulações, mas que também leve políticas públicas de saúde, educação, segurança e agricultura aos quilombos.

Com apoio de uma rede de organizações, entre elas o Instituto Socioambiental, a Conaq divulgou a petição “Nenhum quilombo a menos” que conseguiu reunir mais de 100 mil assinaturas em defesa do decreto.

Nesta semana, o presidente do DEM, senador Agripino Maia (RN), chegou a admitir que a ação é um “equívoco do passado” (leia aqui).

A regularização dos quilombos já estava em marcha lenta no governo de Dilma Rousseff e a situação continuou na administração Temer, cuja principal base de apoio é a bancada ruralista (saiba mais). Os ruralistas pressionam pela paralisação definitiva das titulações. Em abril de 2017, a BBC Brasil divulgou que a Casa Civil teria determinado a suspensão dos processos até que o STF terminasse o julgamento (saiba mais).

A CNA e a CNI pediram para participar do processo da ADI e manifestaram-se contra o decreto. O ISA também requereu fazer parte da ação, mas para defender a norma.

No julgamento de hoje, Mendes e Barroso voltaram a trocar farpas, como tem ocorrido nos últimos meses em assuntos diversos. Barroso insistiu que o direito quilombola à terra previsto na Constituição pode ser regulamentado por meio de um decreto, enquanto Mendes discordou, defendendo a posição do DEM, afinal derrotada, de que seria necessária uma lei para isso. A presidente do tribunal, Cármen Lúcia, precisou intervir para dar fim à discussão.

Duas outras pautas importantes para os direitos socioambientais estavam previstas para o plenário do STF, mas os ministros não puderam analisá-las por causa do julgamento do Decreto 4.887: um pedido de indenização de fazendeiros em virtude da demarcação da Terra Indígena Parabubure (MT) e a possibilidade de o governo reduzir Unidades de Conservação (UC) por Medida Provisória.

Decisão

Também foram chancelados pela maioria dos ministros o critério da autoatribuição – segundo o qual a própria comunidade diz quem são seus integrantes e onde está localizada – e a noção de que seu território deve ser suficiente para sua reprodução física, cultural e social.

“Não existe hoje nenhum motivo, razão ou circunstância para a política de titulação de quilombos estar ou continuar paralisada. O que se espera agora que é que a administração pública dê continuidade e conclua os processos de regularização”, comenta Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. “Hoje, tivemos uma grande demonstração da mudança do posicionamento do STF. Temos uma configuração diferente daquela na qual foi julgado o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (RR), de 2009, quando apareceu a tese do ‘marco temporal’”, analisa.

Durante o julgamento, o ministro Gilmar Mendes disse que o governo poderia publicar um novo decreto para regulamentar o assunto, se o STF legitimasse a norma atual. Ele usou como exemplos conflitos entre quilombolas e as Forças Armadas para defender sua afirmação.

“Se viesse um decreto em outros termos, diferentes do que o Supremo decidiu, certamente o tribunal diria que esse decreto é inconstitucional. Não acredito que o governo fará uma aposta confrontando o Supremo, que fez seu exercício legítimo de afirmar a constitucionalidade de uma norma”, avalia a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.

O voto considerado mais progressista veio de Fachin, o primeiro a falar hoje. Ele disse que, por ser fundamental, o direito quilombola à terra deve ter a máxima eficácia da Constituição. “Se, já em relação à questão indígena, o ‘marco temporal’ enseja questionamentos de complexa solução, até mesmo em virtude da positivação do direito em diversas leis e constituições anteriores à Constituição vigente, em relação ao reconhecimento do direito à propriedade das terras tradicionais quilombolas a questão se revela com contornos ainda mais sensíveis”, afirmou.

Ricardo Lewandowski foi duro, chegando a classificar de “prova diabólica” a exigência prevista no “marco temporal”. “[O autor da ADI] não logrou demonstrar ainda que minimamente as supostas violações constitucionais do decreto. O autor está revelando mero inconformismo com os critérios adotados pelo decreto. Não se conforma com esses critérios e quer impor à corte e à sociedade os próprios critérios”, criticou.

O decano do STF, Celso de Melo, lembrou do papel do tribunal de proteger as minorias contra as maiorias na democracia e reforçou o status constitucional da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foi ratificada pelo Brasil e reconhece internacionalmente os direitos indígenas e quilombolas à terra.

“Os remanescentes das comunidades quilombolas, sem garantia da permanência em suas terras, expõem-se ao risco gravíssimo da desestruturação cultural, da perda de sua identidade étnica, da dissolução de seus vínculos históricos, sociais e antropológicos e da erosão mesma de sua própria consciência e percepção como integrantes de um povo”, salientou.