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Guilherme Boulos: UDN de toga

Fonte: IRRE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa)

Por Guilherme Boulos, coordenador do MTST

Trinta anos depois da Constituinte, o regime político da Nova República dá sinais claros de esgotamento. A crise de representação chegou ao paroxismo, com um descolamento dramático das maiorias políticas em relação às maiorias sociais. A isso
somou-se o crescimento da polarização na sociedade e, na esfera parlamentar, a implosão do “centro democrático”. O campo progressista não teve até aqui força suficiente para direcionar este processo para saídas populares.

O golpe de 2016 e a condução da operação Lava Jato agravaram a falta de legitimidade das instituições, criando um vácuo de poder. Num dos lados da praça, um Executivo sem sustentação no voto popular, com índices inéditos de rejeição e sob fortes suspeitas de corrupção. Em outro lado, um Parlamento desmoralizado, símbolo das práticas mais escusas e que, a cada votação, faz questão de passar do cinismo ao escárnio, sem qualquer preocupação com a opinião da sociedade.

O terceiro lado da praça viu neste show de horrores sua oportunidade de ouro. O Judiciário foi progressivamente assumindo o protagonismo e ocupando o vazio. Resolveu fazer política partidária. No momento inicial, atuou decisivamente junto com Temer e Eduardo Cunha para viabilizar o impeachment de Dilma Rousseff:

O PT ali era o único alvo da Lava Jato, que despudoradamente vazou escutas ilegais, promoveu o espetáculo da condução coercitiva de Lula e sincronizou operações com o calendário das manifestações contra o governo.

Passado o impeachment, a Força Tarefa voltou suas baterias contra o PMDB, mantendo-se no protagonismo da política. É emblemático que Eduardo Cunha só tenha sido afastado e preso depois de cumprir sua missão, embora o pedido tramitasse desde dezembro de 2015. Figurões do PMDB foram presos e Temer virou alvo de Rodrigo Janot. Isso produziu fissuras internas no Poder Judiciário, a começar por Gilmar Mendes que, depois de aplaudir os procedimentos de exceção contra o PT, retomou subitamente seu garantismo quando o alvo mudou.

Neste momento, a batalha de honra da Lava Jato é inviabilizar a candidatura presidencial de Lula e, no limite, prendê-lo. Vale tudo, da combinação de pena pelos desembargadores do TRF 4 para evitar embargos infringentes até o mais grosseiro casuísmo de Luis Fux, presidente do TSE, para reinterpretar a aplicação da Ficha Limpa.

O Judiciário conseguiu, em pouco tempo, apropriar-se de todas as competências da República: decide sobre a indicação de ministros, sobre possibilidade de candidaturas presidenciais, sobre semi-parlamentarismo e até mesmo sobre indulto de presos, que a Constituição define expressamente como atribuição presidencial. A politização do Judiciário se completou com a judicialização da política.

O jurista Pedro Estevam Serrano faz uma analogia deste papel com o que foi, em outros tempos, assumido pelos militares, um poder moderador no pior sentido do termo: “O Judiciário sempre teve um papel conservador, exercendo uma certa tutela dos interesses das elites em praticamente todos os países do mundo. O que é interessante, no caso da América Latina, é que ele passa a ter um papel novo na sua história, assumindo a condição de uma espécie de poder moderador, um controlador da democracia para garantir que ela não extravase seus limites”, disse numa entrevista ao portal Sul 21.

E tal como os militares fizeram no passado, os juízes justificam sua intervenção por um dever moralizador. Em nome do combate à corrupção, tudo é permitido. Até mesmo a abertura para um regime ainda mais corrupto, como nos mostra Berlusconi e a própria ditadura militar brasileira. O falso moralismo, em nossa história política, teve seu grande símbolo na UDN (União Democrática Nacional) de Carlos Lacerda. Um clube de corruptos e privilegiados se reunia para fazer discursos inflamados contra a corrupção e os privilégios. As recentes denúncias em relação ao auxílio moradia de juízes e a inúmeros mecanismos para obter salários muito acima do teto constitucional mostram que não estamos tão longe da hipocrisia lacerdista.

A questão é onde isso vai parar. A história é cheia de exemplos do que ocorre quando um poder sem qualquer controle social, sem limite externo, assume o protagonismo da vida política em nome de uma suposta missão moralizadora. Não costuma terminar bem.