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Documentário ‘Auto de Resistência’ traz história de mortos pela polícia

‘Quando o policial mata na favela, ele criminaliza quem quer’, diz mãe que perdeu o filho e participa do filme; longa mostra que 98% dos inquéritos são arquivados sem esclarecimentos

O mecânico Thiago da Costa Correa da Silva, de 19 anos, e o amigo de infância, o estudante Carlos Magno de Oliveira Nascimento, 18, ouviram tiros e saíram correndo quando deixavam uma barbearia na Estrada da Independência, no Morro do Borel, zona norte do Rio de Janeiro. O pintor e pedreiro Carlos Alberto da Silva Ferreira, 21, fez o mesmo. Os três tentaram se abrigar em uma viela, mas acabaram baleados por policiais do 6º Batalhão da Polícia Militar, que realizavam uma operação na comunidade. O taxista Everson Silote, de 26 anos, voltava para casa e também foi morto ao tentar se identificar como morador e trabalhador.

As quatro mortes foram registradas e explicadas como supostas oposições à intervenção policial, também chamado de “auto de resistência”. As mortes completaram 15 anos no dia 16 de abril de 2018. O caso de Thiago, Carlos Magno, Carlos Alberto e Everson e de outros jovens do Rio de Janeiro são contados no documentário “Auto de Resistência”, de Natasha Neri e Lula Carvalho, que compõe a 23ª edição do Festival É Tudo Verdade.

O longa-metragem busca acompanhar os casos pelo olhar dos familiares e pelo sistema de justiça. Débora Maria da Silva, fundadora das Mães de Maio, que viu o filme na estreia em São Paulo nesta sexta-feira (13/4), afirmou que, embora se passe no Rio, o documentário retrata uma realidade de massacre da população negra que acontece em todo o país. Ela destaca que o olhar do documentário vai além da polícia e mostra os outros atores responsáveis pela violência de Estado.

O filme mostra que temos duas polícias, uma que mata e outra que não investiga, um Ministério Público que de público não tem nada e é o maior violador de direitos que existe, e um Judiciário que devia estar no banco dos réus”, afirma.

Apesar da expressão “auto de resistência” ter sido abolida em 2012, a jornalista, pesquisadora e uma das diretoras do filme, Natasha Neri, aponta que a mudança do termo mantém uma lógica de criminalizar a vítima. “Homicídio decorrente de oposição à intervenção policial também está errado porque está supondo que o sujeito morto é um criminoso que se opôs à ação policial, sendo que não tem provas sobre isso e sim uma versão policial”, explica.

Dos 16 policiais envolvidos nas mortes do Morro do Borel, cinco foram indiciados, dois absolvidos e três serão submetidos a novo julgamento em 22 de novembro deste ano, após recursos e anulação de júris anteriores. “O auto de resistência é pra justificar a ação ilegal dos policiais. Quando o policial mata na favela, ele criminaliza quem quer”, declarou à Ponte Jornalismo a operadora de fábrica Maria Dalva Correa da Silva, que hoje luta para manter viva a memória do filho Thiago e denunciar a letalidade policial.

Meu filho não volta mais, mas eu não quero que outras mães passem pelo o que eu passei, mas tem sido difícil, porque essas mortes continuam”, segue.

O filho de Maria Dalva, Thiago, e a frase que um dos jovens disse ao policial antes de ser morto | Foto: Arquivo pessoal

Estudiosa do tema há dez anos, Natasha Neri publicou um livro com outros pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em 2013, sobre autos de resistência entre 2001 e 2011. Segundo ela, há um “corporativismo” entre as polícias e falta de empenho, sobretudo pela Civil, para investigar pela maioria acontecer em comunidades e que no Ministério Público as ocorrências também não são prioridade. “Os casos que chegam a ter um processo são a exceção. A militância dos familiares ou por conta da existência de vídeos que caem nas redes sociais acabam influenciando a possibilidade de abrir um processo”, revela.

Sobre a morte da vereadora Marielle Franco (Psol) – que aparece no documentário -, ocorrida há exatamente um mês, e o momento para quem milita pela defesa dos direitos humanos, Natasha acredita na resistência. “Há um sentimento de um medo coletivo, mas também uma força. Todo mundo foi para a rua, as pessoas não querem se calar”, diz.

Confira a entrevista com a diretora:

Ponte – O filme mostra casos que ainda aguardam julgamento, com a condenação de policiais ou réus absolvidos, mas aponta que 98% dos inquéritos são arquivados sem esclarecimentos. O que leva um caso a ser arquivado?

Natasha Neri – Muitos casos que estão no filme são os que tiveram processo e são a exceção. Nosso recorte é de situações em que ou a militância dos familiares ou vídeos que caíram nas redes sociais contribuíram na investigação. Esses dois fatores acabam influenciando a possibilidade de haver processo, isso é dado de pesquisa. Já analisei centenas de inquéritos porque boa parte da pesquisa que faço nesses dez anos é sentar nos cartórios, nas centrais de inquérito, no GAESP (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público do Rio de Janeiro, criado em dezembro de 2015), ler e entender as construções que são feitas ali.

Ponte – Qual análise você faz destes documentos com as histórias contadas pelos familiares?

Natasha – Vemos um corporativismo entre a Polícia Civil e a Polícia Militar. Via dentro das delegacias e está impresso no modo como as investigações são feitas: o policial que investiga a maior parte dos casos é um policial civil que trabalha na mesma área que atua um policial militar que matou. Isso quando não é a própria Civil investigando policiais civis, como no caso da Favela do Rola [quando cinco pessoas foram mortas por agentes da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais) que sobrevoavam a favela, numa operação em agosto de 2012, na zona oeste, e foram absolvidos em 2017]. A maior parte dos inquéritos só traz como testemunhas os próprios policiais militares envolvidos nos homicídios. E aí a Polícia Civil alega que não tem condições de ir na área porque, em geral, a favela é estereotipada como uma suposta área de risco e não faz nenhum esforço para ir ao local. Mas a gente sabe que o Ministério Público pode investigar e, nos casos em que há possibilidade de denúncia, poucos promotores chegam a ouvir os familiares.

Ponte – E quanto ao lado da favela, como as pessoas reagem?

Natasha – Existe um medo por parte dos moradores de favelas de irem até a delegacia e serem ameaçados pelos policiais militares. Principalmente nos casos que peguei no filme, com a criação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora, em 2008). O que a UPP traz de negativo para o caso do homicídio praticado pela polícia é manter o policial que mata naquele lugar. As famílias e as testemunhas morrem de medo de irem na delegacia porque o policial continua trabalhando no local, sendo que deveriam ser afastados do serviço de rua para o trabalho interno, no mínimo, e não ter porte de arma.

Ponte – O que você destacaria com relação ao trabalho dos investigadores?

Natasha – Na delegacia, uma coisa muito marcante é que a arma dos policiais não é apreendida. Existe a apreensão virtual das armas. O delegado faz um auto de apreensão, mas em seguida faz um auto de depósito. E quem fica sendo depositário da arma no ICCE (Instituto de Criminalística Carlos Éboli) é o próprio policial. Ele chega tempos depois do crime ter sido cometido e as armas são intercambiáveis, existem três componentes na arma, então eles podem mudar. Quando o policial leva aquela arma para a perícia, não tem garantia nenhuma de que a apresentada é a mesma usada. Além do que, como já passou tempo, todas as evidências podem ter sido mudadas. A perícia na arma acaba prejudicada. Já vi casos de processos em que as armas não tinham sido levadas para a perícia e nem a perícia tinha sido feita. O juiz tinha que dar um mandado de busca e apreensão nas armas para que elas fossem entregues no ICCE.

Ponte – Identificou outras lacunas?

Natasha – Na maior parte dos casos, não é feita perícia no local. Alguns deles, hoje em dia, vão para a Divisão de Homicídios, mas ela pega uma parcela muito pequena e só de delegacias da zona sul da cidade, do centro [com a resolução de 2012 da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a investigação desses casos passou a ser de atribuição da Divisão de Homicídios da Polícia Civil]. Em outros, a Divisão de Homicídios faz a perícia do local, mas a maior parte de autos de resistência acontecem nas periferias do Rio, na zona norte, na Baixada Fluminense, na zona oeste. Esses casos, nesses lugares, o auto de resistência continua sendo investigado na delegacia do bairro.

Em protesto, Marielle Franco aparece ao lado de mães que perderam filhos vítimas da polícia | Foto: reprodução

Ponte – O que incentiva esse suposto corporativismo?

Natasha – Boa parte dos policiais civis concorda com a atuação da Polícia Militar. Não tô falando de delegados, porque alguns delegados ainda têm uma visão um pouco melhor do que o policial civil que tá na ponta. Tem um policial que eu pesquisei que falou para mim: ‘Esse caso aqui de auto de resistência, o policial matou, mas poxa, quantas vezes esse policial tinha trazido esse cara aqui na delegacia?’. Eles acham que o PM tá cansado de prender e ver a justiça soltar, então acham que é justificável o homicídio e que não pode prender o policial em flagrante. Também alegam que não pode apreender as armas, porque o policial tem que ter segurança jurídica para trabalhar.

Ponte – Qual justificativa se dá sobre a taxa baixa de investigações concluídas?

Natasha – Eles usam a narrativa da violência urbana, da necessidade de estar na rua com mais operações, a ideia de “como vou deixar o batalhão sem armas para trabalhar”. Legitimam esse modelo da operação policial. Eles dizem que não têm condições de apreender as armas e ir na favela porque precisam fazer uma grande operação. Até parece… Quando tem uma pessoa morta pela polícia, a própria comunidade quer que seja investigado. Se você fala com a associação de moradores, é claro que a polícia pode ir lá. É uma falta de vontade política, é falta de determinação da chefia para que esses casos sejam investigados.

Ponte – O que poderia ser feito?

Natasha – Eu acho que esses casos são melhores investigados pelo Ministério Público. Infelizmente a Polícia Civil não tem isenção suficiente. São raros os casos em que a Divisão de Homicídios indicia os policiais. Tem alguns casos, sim, mas são os que há providências contundentes como vídeos e o ativismo da comunidade, a coragem de familiares e moradores das favelas de irem até a delegacia. A maior parte do trabalho quem faz mesmo é a comunidade, que vai atrás de investigar, não é a Polícia Civil que investiga.

Ponte – Há um risco de que os “autos de resistência” aumentem com a intervenção federal?

Natasha – A gente viu no ano passado e desde 2015 que os autos de resistência vêm aumentando. Por que vêm aumentando? Porque o modelo da operação policial vem sendo exacerbado. A Secretaria de Segurança usa as operações como principal metodologia dessa suposta guerra às drogas, que na verdade é uma guerra contra pretos, pobres e favelados. É um genocídio que eles estão promovendo. É insustentável continuar com essa política de segurança pública ultra militarizada, com uso de aparato bélico. Em 2008, o ministro da Justiça, na época era o governo Lula, mudou a legislação federal para que a Polícia Civil do Rio de Janeiro pudesse usar um helicóptero blindado de uso restrito do Exército, que foi usado na Guerra do Vietnã. A gente tem equipamentos de guerra sendo usados diariamente nas favelas, estamos com uma média de quatro mortes por dia nas favelas. Em janeiro, foram cinco mortos por dia. Em fevereiro, quatro diariamente. É insustentável o que a gente tá vivendo.

Ponte – Como você avalia a transferência dos crimes dolosos cometidos pelas Forças Armadas contra civis para a Justiça Militar?

Natasha – Vejo com muita preocupação a lei sancionada pelo presidente Michel Temer (MDB). Teve a chacina do Salgueiro, a Defensoria foi à Corte Interamericana de Direitos Humanos semana passada para entregar uma petição sobre o caso. Foi uma operação conjunta da CORE com o Exército, onde oito pessoas morreram [em novembro de 2017]. Nesse caso, a Justiça Estadual não conseguiu terminar o inquérito porque o Exército se negou a colaborar com a investigação: ninguém foi depor, não houve apreensão das armas e o Comando Militar do Leste, liderado pelo general Braga Netto [interventor federal na pasta da Segurança Pública do Rio], dizia que não havia crime e que não era necessário ser instaurado inquérito na Justiça Militar. Só depois de muita pressão da sociedade é que foi instaurado, mas ninguém tem acesso ao documento. A Defensoria Pública, que atende algumas famílias, não tem acesso à investigação que está sendo feita na Justiça Militar.

Ponte – Você acredita que isso possa se repetir?

Natasha – A possibilidade de que os homicídios praticados pelas Forças Armadas em serviço vá para a Justiça Militar, na minha opinião, é um retrocesso na legislação brasileira. A gente já tem dificuldade de que haja responsabilização penal para os autores do homicídio no âmbito da Justiça Comum, quiçá na Justiça Militar. A possibilidade desses casos não terem uma responsabilização penal dos acusados é enorme e estamos em um cenário político que leva a esse recrudescimento. Existe um respaldo político, seja pelo governo federal ou estadual, que possibilita essas mudanças legislativas da atuação das Forças Armadas nessas operações extremamente militarizadas com os caveirões terrestres, aéreos…

Ponte – Você comentou sobre a mobilização das pessoas para que os casos sejam investigados, mas moradores de Acari relataram à Ponte que as ameaças de policiais aumentaram após a intervenção. Vendo essa questão que envolve a atuação e morte da Marielle, em que ela chega a aparecer no filme em passagens de protestos de mulheres e familiares antes de ela ser vereadora, como você enxerga o atual momento?

Natasha – Não tive acesso à investigação. A morte da Marielle deixa muita gente se sentindo mais vulnerável do que já estava. Se até uma vereadora foi assassinada, imagina para os familiares de vítimas como isso fica? Eu não posso falar por eles, mas há um sentimento de um medo coletivo, mas também uma força. Todo mundo foi para a rua, as pessoas não querem se calar. São dois efeitos: por um lado, pode gerar um medo, mas por outro, um fortalecimento da pauta do genocídio. As pessoas também estão querendo gritar, muita gente que não estava ciente desse genocídio e agora tá tomando consciência. Então vamos ver pelo lado positivo de que as pessoas estão debatendo isso agora. Pela primeira vez, historicamente, temos espaço para tratar disso, até na grande mídia. É um despertar também da consciência coletiva: as pessoas estão querendo ir para rua lutar, inclusive pela Marielle.

 

Por Jeniffer Mendonça

Fonte: Ponte Jornalismo