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Conflitos no campo | Da invasão de terra para matar à ocupação de terra para viver

Foto por Joana Berwnager/Sul21

Os “Conflitos no campo Brasil” é uma publicação anual da CPT (Comissão Pastoral da Terra), que já recebeu a edição crítica de tudo quanto, sobre essa realidade, aconteceu em 2017, com levantamento detalhado e preciso dos dados relativos ao número de vítimas desses conflitos. No Rio Grande do Sul, o livro onde aparecem os números relativos a essa verdadeira guerra vai ser lançado em Nova Santa Rita, no dia 18 deste junho, na Câmara de Vereadores do município.

A leitura deste anuário pode nos esclarecer sobre as causas, os responsáveis, individuais ou coletivos, quantas pessoas foram mortas ou feridas/os nessas disputas por espaço e  vida, as datas e os lugares onde sem-terras, índias/os, quilombolas foram eliminadas/os ou feridas/os.

Geralmente vistos como de responsabilidade exclusiva do povo pobre, até as ocupações promovidas por esse povo em latifúndios explorados antissocialmente – desobedecendo de modo inconstitucional e ilegal o uso do bem terra, indispensável a vida de todas e não só de algumas pessoas –  são criminalizadas de forma preconcebida e tendenciosa, desatenta a qualquer particularidade do caso,  como “invasões”. A serem tratadas “com o rigor da lei”, esse sempre unilateral e até classista, esquecido dos direitos sociais que ela também declara inerentes a quem vive necessitado, sob coação irresistível da fome, da falta de teto, da miséria, da doença, do desemprego, da indiferença pública e privada com a outra – esta sim – invasão.

Aquela que usurpa o espaço físico terra em prejuízo irreparável a quantas/os têm direito de acesso a ela, atravancando com projetos e leis impeditivas de chegarem lá, invadindo reservas indígenas, quilombolas, grilando, enganando, simulando e fraudando títulos capazes de dar aparência de legalidade para esbulhos planejados com habilidade, mesmo sobre posses velhas de gente indefesa.

Morram então esses outros “sujeitos de direito” (!?) a espera de o “devido processo legal” da reforma agrária, legalmente prevista mas nunca realizada, obedecer seu trâmite atravessado por todo o tipo de chicana, mas respeitado como um fim em si. A esses se concede, finalmente, o espaço de terra tragicamente previsto pelo poeta João Cabral de Melo Neto em “Morte e vida severina”:

“Esta cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe neste latifúndio. Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida.”

Justamente como o anuário da CPT refere sobre o que aconteceu em 2017, com o cuidado de mostrar como as pessoas eliminadas por essas repetidas chacinas são previamente escolhidas, ou por sua liderança contrária às pretensões do capital latifundiário interessado na terra, ou para se intimidar, pela crueldade do exemplo, quem ainda imagine contrariá-lo.

Pelos números de mortes e lesões, no período de 2015-2017, o anuário mostra como o golpe de Estado favoreceu essa escandalosa injustiça:

“No período da conjuntura da ruptura política (2015-2017), sobretudo em 2017, ainda que 28,2% dos assassinatos tenham sido cometidos contra lideranças do campo, 31 dos 71 assassinatos ocorreram em massacres (43,7 % do total), outra face cruel do contraditório momento político pelo qual passa a sociedade brasileira, onde violência institucional e a violência física se mostram como duas faces do mesmo processo. Assim, em 2017, além os assassinatos, além do caráter seletivo contra lideranças (28,2% do total), a violência se fez sentir levando pânico e terror aos grupos sociais em situação de subalternização, com massacres, caracterizados por esquartejamentos, queimaduras de corpos e casas, decapitações e tiros de pistola.” (Em nota de pé de página, o anuário esclarece que a metodologia da CPT identifica “massacre” em “casos onde 3 ou mais pessoas foram mortas em uma mesma ocasião”).

O anuário acrescenta uma crítica de extraordinária validade a esses números, para mostrar como a impunidade dessa ação criminosa já entrou para a tradição histórica com que se interpreta de forma parcial a lei no Brasil, identificando até os grupos com poder econômico suficiente para seguirem nesse macabro propósito:

“Desde 1985 foram contabilizados pela CPC em todo o país 46 massacres, sendo 5 somente no ano de 2017, ou seja, mais de 10% no mesmo ano. Assim, mais que um simples número, os massacres no campo brasileiro ao longo do período da conjuntura pó-impeachment trazem consigo a perversidade com que tem sido orquestrada a inserção das frentes de invasão/expansão do agro e outros negócios no território nacional, como a mineração, a exploração de recursos naturais e projetos de infraestrutura que, enquanto os seus protagonistas se movem para acelerar sua aprovação formal nas instituições do Estado, mudando as leis para que os favoreçam, no campo se antecipam, com violência, fazendo valer “na marra” seus interesses.”

Por falar em “mudando as leis para que os favoreçam”, nisso a bancada ruralista vem conseguindo o que quer dentro do Congresso Nacional desde o golpe. Aliada fiel do (des)governo, mas não satisfeita com o que já conquistou em matéria de aniquilação do Incra e da Funai, pretende transformar em lei qualquer reação de protesto dos movimentos populares, do tipo MST e MTST como passível de repressão violenta por tratar-se de terrorismo (projeto do deputado Jerônimo Goergen).

Uma hipótese que Guilherme Boulos, na Carta Capital de 5 de março, bem qualificou como “terrorismo legislativo” contra esses movimentos.

Esta bancada não aprendeu a lição da história. No passado, não só o do Brasil como o de todo o mundo, a lei pode até dar apoio à invasão de terra para dominar e matar, mas nunca teve força para impedir, por completo, a ocupação de terra para o povo se libertar e viver.

 

Por Jacques Távora Alfonsin

Fonte: Sul21