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Da maior ocupação da América Latina à universidade

Fonte: Carta Capital – por Nádia Pontes — publicado 06/03/2017 00h30, última modificação 03/03/2017 12h47

Pedro Cerqueira, de 20 anos, foi desalojado de Pinheirinho e chegou a pedir esmolas. Foi aprovado em quatro universidades públicas

Em vez dos móveis convencionais, a sala da casa onde Pedro Cerqueira, 20 anos, mora desde o último Natal com os avós abriga um freezer e uma mesa tomada por guloseimas. A pequena mercearia foi improvisada por um motivo inédito na família: juntar dinheiro para o começo da vida universitária do jovem.

Aprovado em quatro universidades públicas, ele escolheu o curso de Ciências e Humanidades da Universidade Federal do ABC, a 110 km de onde reside com a família em São José dos Campos, no interior paulista. “A gente nem acredita que ele, filho de uma analfabeta e de um caminhoneiro, conseguiu tudo isso”, conta Maria Nunes da Silva, 60 anos, a avó que criou Pedro e a quem ele chama de mãe.

Quando não está no trabalho de faxineira, Maria faz pães para vender na mercearia. Seus clientes são moradores do bairro recém-inaugurado na cidade, o Novo Pinheirinho dos Palmares. As 1.461 casas de 46 m2 construídas numa área remota abrigam parte das famílias retiradas da maior ocupaçãoda América Latina, conhecida como Pinheirinho.

Foi lá que Pedro chegou aos oito anos e viveu até ser expulso em 2012, aos 16. Ele ainda se emociona quando fala daquela madrugada, quando acordou com helicópteros e bombas de gás lacrimogêneo durante a desocupação, comandada por 2 mil policias militares.

“Foi horrível. Com o tempo, a gente quer esquecer e vai deixando pra lá”, diz sobre as lembranças do Pinheirinho que tentou guardar na memória e numa câmera digital, que nunca mais mexeu. O caso, que foi chamado de “Massacre do Pinheirinho” por diversas organizações de defesa dos direitos humanos, teve repercussão na imprensa internacional. A Anistia Internacional denunciou a operação por diversas violações, como expulsão forçada, uso da violência e prisões indevidas.

Fome e dinheiro no semáforo
No ano da desocupação, morando em alojamentos e mudando de endereço praticamente a cada mês, Pedro fez de tudo para não abandonar o ensino médio. A preocupação da avó era mantê-lo ocupado. “A gente via muita coisa errada na rua, onde a gente morou. Queria que ele fosse um menino bom, que ficasse longe disso”, explica Maria.

Foi assim que ela conseguiu uma vaga num curso técnico gratuito para Pedro. A dedicação do aluno rendeu um contrato de trabalho: por dois anos, ele atuou na Embraer, fabricante de aviões, como parte de um programa para incentivar estudantes.  Ao fim dessa jornada, Pedro ouviu falar, pela primeira vez, sobre universidade pública e seguiu a orientação de buscar um cursinho gratuito.

Foi aceito no CASD, mantido por alunos do ITA (Instituto Tecnológico Aeroespacial). Ainda assim, era difícil crer que chegaria mais longe: “Eu acreditava que pobre nunca poderia frequentar uma universidade”, diz Pedro. Na primeira semana de cursinho, ele quis desistir. Foi então que Ana Esteves, colega de turma, entrou em ação. “Ele tinha muita dificuldade em coisas muito básicas na área de Exatas, eu ficava até chocada, mas fiz de tudo pra ajudar”, conta Ana, que acabou de ser aprovada no curso de Serviço Social na Unesp, depois de dois anos de cursinho.

Estar presente nas aulas já era um desafio. Sem dinheiro para pagar a passagem, ele pedia ajuda no semáforo. “Eu ia com a mochila, pintava o nome do cursinho na testa e pedia qualquer contribuição. Não era nada legal… Mas muitos me ouviam e me ajudavam.”

Durante as aulas noturnas, ele lidava ainda com outra adversária: a fome. “Eu percebi que ele estava faltando às aulas. Numa conversa, Pedro me disse que não tinha o que comer em casa, que tinha problemas de moradia e que não sabia se chegaria ao fim do curso”, conta Bárbara Camargo, professora de Redação.

Sensibilizada, ela passou a ajudá-lo financeiramente, além de reforçar o ensino. “Eu jamais vou permitir que um aluno desista de um sonho por causa de uma necessidade biológica, como é a fome”, justifica. Pedro retribuiu e tirou nota 860 na redação do Enem. A maioria dos participantes conseguiu entre 501 e 600, segundo o Ministério da Educação.

A exceção
O avô de Pedro, Brasilino Gomes Ferreira, 69 anos, fica pensativo quando indagado sobre o desempenho do neto. Foi ele que construiu o barraco de madeira e lona que abrigou a família nos primeiros anos de Pinheirinho. Em dias de tempestade, a vizinhança toda corria para lá. “O nosso barraco aguentava a força do vento e da chuva. A gente tinha que segurar o telhado pra não voar, outros seguravam a lona pra não rasgar. Mas sempre aguentou os trancos”, relembra Basílio.

Hoje, os avós sonham em ver o neto formado, trabalhando e ajudando as pessoas. “Ele é muito prestativo”, emenda Maria. Pedro diz que, por ser negro, de escola pública e de baixa renda, enxergou no sistema de cotas a possibilidade de romper com o ciclo da pobreza, e mudar de vida. “Eu não sei definir as cotas. Não é uma vantagem, nem um benefício, ou mérito. Mas me ajudou bastante, eu senti que eu tinha chance de entrar na universidade se estudasse muito”, detalha.

“Estamos diante de uma exceção”, analisa Paulo Jorge Leitão Adeodato, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco e especialista em mineração de dados na área de educação. Com base nas informações coletadas pelo Enem, Adeodato está em fase de conclusão de uma pesquisa sobre os fatores determinantes para um bom desempenho no exame. A análise parcial mostra que, em escolas onde a renda média dos pais é acima de R$ 2.500, o fator mais importante para o sucesso é a escolaridade do pai.

“A mãe é uma constante, não importa a escolaridade. Ainda que ela seja analfabeta, ela sempre vai cobrar e apoiar o estudo dos filhos”, diz Adeodato. O resultado se encaixa no papel que Pedro atribui à avó. “Ela sempre me educou muito bem. Mostrava que não precisava fazer mal nenhum, me ensinava a ser correto, honesto, mais humilde e corajoso.”

Quando teve contato com a Filosofia, Pedro reconheceu os ensinamentos da avó: “A Filosofia faz a gente pensar um pouco. Ela tira a gente da ignorância e leva a gente ter sabedoria. É por aí que eu quero seguir.”

Fotos: Nádia Pontes / DW