“Cheguei logo no segundo dia para construir minha casa. Parecia um formigueiro, gente marcando território com o que podia. O tempo passava e todos começaram a ficar desesperados com a pressão para desistirmos. Daí tive a ideia: ‘Vou fazer uma assembleia. Precisamos nos organizar’.”
A lembrança da primeira reunião dos moradores da ocupação Izidora ainda é forte na memória de Edna Souza, de 49 anos. Ao decidir fincar o pé com filho e marido naquela região isolada no norte de Belo Horizonte, motivada pelo desejo de se livrar do aluguel, ela não imaginava que se tornaria referência para milhares de pessoas na mesma situação.
Hoje, Edna atua ao lado de outras quatro mulheres na coordenação da ocupação, cenário de um dos maiores conflitos fundiários em área urbana do Brasil. “Aqui sou um pouco mãe, prefeita, médica, psicóloga. Não existe descanso até o dia em que a Izidora for urbanizada”, afirma.
As primeiras pessoas chegaram ao local em junho de 2013. O terreno de morros e vegetação rasteira, a cerca de 18 km do centro da cidade, se espalha por uma área equivalente a 1,3 mil campos de futebol – pela dimensão, foi dividido em três vilas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) logo no início.
Hoje, segundo levantamento da PUC-MG, abriga 30 mil pessoas em 8 mil casas, em quase quatro anos de disputa judicial pelo terreno.
Reintegração de posse
A batalha judicial entre os moradores da ocupação e a Granja Werneck, dona do terreno, tem rendido muitos desdobramentos ao longo do tempo.
Em 2013 a Granja Werneck entrou com um pedido de restabelecimento da posse do terreno, juntamente com a prefeitura de Belo Horizonte, como parte de um projeto de construção de 8 mil habitações do Minha Casa, Minha Vida.
O convênio para construção, afirma Otávio Werneck, um dos proprietários, foi fechado no mesmo ano, antes de as primeiras famílias ocuparem o local. “O projeto é para atender 40 mil pessoas. Número muito superior ao que vive atualmente lá”, diz.
Ele afirma que os donos do terreno já pensavam em uma destinação social para a área desde os anos 1990, mas houve demora nos acertos com a prefeitura e em liberações ambientais.
“Quando começamos a divulgar para colocar (o projeto) em prática, em 2013, começou também a ocupação”, afirma.
Em 2015, a Justiça mineira chegou a autorizar o despejo das famílias, mas a decisão foi suspensa pelo Superior Tribunal de Justiça.
No ano passado, a ocupação entrou na pauta da campanha eleitoral municipal. O atual prefeito, Alexandre Kalil (PHS), visitou a região na campanha e prometeu que evitaria o despejo das famílias.
“Sei que ali existem problemas graves, até mesmo de especulação. Mas a Izidora já é um bairro consolidado. O que eles vivem ali é um verdadeiro terrorismo com essa ameaça de despejo”, disse o prefeito à BBC Brasil logo após a vitória no segundo turno.
Em março, a prefeitura desistiu formalmente de uma das ações relacionadas à Izidora, o que não impede o ingresso de novas ações de reintegração no futuro. Na mesma época, o governo do Estado apresentou uma proposta pela permanência das vilas Rosa Leão e Esperança, com a condição de que parte da vila Vitória fosse despejada – os moradores rejeitaram a oferta.
No ano passado, o Tribunal Internacional dos Despejos, órgão que produz e envia recomendações à ONU e a governos sobre conflitos por moradia, elegeu o caso como um dos sete mais significativos do mundo.
Rose
Edna já perdeu as contas de quantas assembleias fez no local. “O primeiro passo foi conhecer nossos direitos, com ajuda de movimentos sociais. Imagine conscientizar milhares de pessoas sobre isso?”, questiona.
Toda terça-feira, Edna se junta à diarista Rose Freitas, de 33 anos, em reuniões com moradores da vila Esperança.
“Soltamos foguete, batemos sino e gritamos de porta em porta para chamar o pessoal. A participação é importante demais, e por isso chegamos até aqui”, diz Rose, para quem a ocupação simbolizou um recomeço.
Após ter um filho de 15 anos assassinado, ela deixou o bairro em que vivia na zona oeste de BH com os outros dois filhos, em meio a uma depressão. Desempregada, não tinha como pagar contas e soube da ocupação por amigos.
“Conversei com o pessoal que já estava construindo e consegui um lote”, relembra, ao mostrar sua casa de quatro cômodos, erguida com ajuda de amigos. Nos últimos três anos, ela já trouxe a mãe e uma das irmãs para a Izidora. “Hoje, mesmo vivendo com medo de despejo, digo que estou na época mais feliz da minha vida.”
Sem trabalho fixo, Rose vive do Bolsa Família, do trabalho como diarista e de uma pensão para o filho caçula – renda total de cerca de R$ 1,2 mil mensais. Nos dias em que não trabalha, passa o dia com Edna no centro comunitário da vila, atualizando o cadastro de moradores, organizando a pauta de reuniões semanais e analisando as diferentes demandas da ocupação.
Charlene
A maioria dos moradores diz ter chegado até ali por falta de alternativas. Ao caminhar pelas ruas estreitas da vila Rosa Leão, Charlene Egídio, de 33 anos, quase sempre é parada por alguém em busca de ajuda.
“Outro dia chegou uma menina de 15 anos com filho no colo. Ela tinha acabado de perder o marido, assassinado, e não tinha para onde ir. Procuramos ajuda, a vizinhança levantou o barraco dela e agora estamos atrás de cesta básica e leite em pó para o menino”, conta.
Charlene se lembra do dia em que Edna a procurou para organizar a primeira assembleia da Izidora, e reconhece a capacidade de diálogo das coordenadoras. “É muita gente morando aqui. Se não tivermos lideranças internas que sejam porta-vozes dessas pessoas, nossa luta não flui”, afirma.
Viver em ocupações urbanas é algo familiar para Charlene. “Meus parentes ocupam lotes sem função social há 20 anos. Não tinha condição de seguir minha vida pagando aluguel sozinha no final do mês. Vim com tudo, simplesmente porque não tinha outra opção”, relembra.
Por quatro anos, Charlene se dedicou de forma exclusiva à coordenação da vila Rosa Leão, onde vive com o filho numa casa construída por amigos. “Meu sustento vinha de doações”, relembra. A convivência com movimentos sociais acabou lhe rendendo um convite para atuar no gabinete de duas vereadoras do PSOL na capital mineira, onde ganha um salário de R$ 2,6 mil.
“Minha experiência como liderança abriu portas para essa chance de atuar por toda a cidade. Sou mulher preta, periférica e sem nível universitário ali dentro, representando os meus. Minha faculdade foi a experiência”, diz.
Contexto das ocupações
Segundo a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da USP, as ocupações urbanas se expandiram muito no Brasil entre 2003 e 2013, na esteira de um boom no setor imobiliário.
“Houve uma explosão sem precedentes no preço da terra e dos imóveis e, embora tenha havido também elevação de renda de setores menos favorecidos, o aumento no preço da terra foi muito maior”, analisa.
Ela aponta falta de políticas urbanas e habitacionais capazes de equacionar essa situação que, somada ao avanço do desemprego, deixa milhares de famílias sem alternativa.
Para Rolnik, o programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, se tornou o único programa de moradia do país, mas não atende necessidades emergenciais. “As pessoas precisam ter onde morar hoje, e não daqui a um ou cinco anos.”
Nilce de Paula
A urgência por moradia também levou Nilce de Paula, a Lu, de 41 anos, a buscar um pedaço de terra na Izidora. Com neta e dois filhos, um deles com deficit cognitivo, ela aproveitou uma oportunidade há dois anos para garantir uma moradia na vila Vitória.
“Tinha acabado de ser demitida, tenho muitos gastos com meu filho deficiente e estava desesperada e endividada. Encontrei uma pessoa vendendo a casa aqui na ocupação a preço de custo (R$ 5 mil). Negociei e consegui minha casa própria”, conta.
Pouco tempo depois, Lu conseguiu emprego como atendente de telemarketing e quitou suas dívidas. Recentemente, pediu demissão e foi atrás do sonho de abrir o próprio salão de beleza, trabalho que concilia com a coordenação da vila. “Segunda-feira é dia sagrado de assembleia, nem abro o salão”, conta.
Nessas segundas, sempre às 19h, Lu sobe no pequeno palco da associação de moradores ao lado de Paula Fonseca, de 30 anos, para a reunião semanal. Por meio de rojões e mensagens via Whatsapp, todos são convocados ao encontro.
“Não importa se são 20 ou 100 pessoas. Estamos sempre aqui para fortalecer a comunidade”, diz Paula, que chegou ao terreno há dois anos. “Vim com marido, filhos e uma menina que peguei para morar comigo porque estava grávida e abandonada. Precisávamos de um espaço maior”, relembra.
Para montar a casa, Paula recorreu a grupos de doações na internet. “Consegui muita coisa, e vi que poderia ajudar outras pessoas daqui também. Minha vida não é fácil, mas há muita gente em situação pior”, diz.
Após se envolver com essa rede de apoio, Paula acabou sendo indicada pelos moradores para coordenar a vila ou lado de Lu. “Muito brasileiro morre sem conhecer seus direitos. Definitivamente isso não vai acontecer com quem vive aqui.”
Organização
Com poucos recursos, as coordenadoras ajudam a comunidade a criar infraestrutura urbana onde não há.
As ruas, por exemplo, são abertas por tratores mediante pagamento de diária de R$ 100. A falta de saneamento básico é contornada com fossas cavadas três metros solo adentro – cada morador é responsável pela sua. As famílias queimam o lixo no quintal, pois não há coleta.
A luz chega por ligações irregulares, os chamados gatos, mas em um modelo autoconstruído, que traz energia de bairros vizinhos e a redistribui entre as casas pela rede improvisada.
“Se a pessoa mora em uma parte mais alta, a luz fica fraca e às vezes nem chega, mas a gente vai levando”, conta Rose.
Segundo Edna, o principal desafio dos moradores da Izidora é o acesso a serviços de saúde e de educação – a matrícula nas três escolas da região não é possível, por exemplo, sem comprovante de residência. “Tivemos que pedir muita ajuda para os vizinhos de outros bairros, pegando o CEP deles emprestado”, conta.
Também há casos de discriminação às crianças da invasão. “Como aqui tudo é chão de terra, as crianças saem com a garrafinha de água na mochila pra lavar os pés quando chegam na aula.”
Há um esforço em padronizar as construções e os métodos de ingresso à ocupação, mas há casos de pessoas que possuem imóveis em outros espaços da cidade e tentam garantir ali um imóvel a mais. Um terreno na região pode valer até R$ 8 mil.
A lógica da especulação imobiliária que os ocupantes tentam impedir com a ocupação é, muitas vezes, reproduzida lá mesmo por grupos em busca de lucro.
“Tentamos resolver tudo com conversas e assembleias. Mas é difícil e muitas vezes não dá. Esse tipo de proteção e organização é papel do Estado. Se ele não consegue fazer, imagina a gente?”, questiona Rose.
Rede de apoio
A ocupação conseguiu reunir uma rede de apoio desde os primeiros dias. Frei Gilvander, de 54 anos, integra a Comissão Pastoral da Terra e acompanhou os primórdios da ação.
O espaço, diz, começou a ser ocupado por famílias da região que não tinham mais condições de bancar os custos de moradia. “Depois, por relação de parentesco ou amizade, foram chamando pessoas de outros bairros”, diz.
Gilvander promoveu articulações com órgãos como Defensoria Pública, Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas e promotores de direitos humanos para assistência às famílias do local. Um coletivo de advocacia popular, o Margarida Alves, assumiu a defesa gratuita dos moradores.
Raquel Rolnik também chama a atenção para o papel dos movimentos sociais na organização das ocupações, pensadas e planejadas para se tornarem bairros. “A ocupação urbana se tornou um símbolo de esperança para essas pessoas que não possuem nenhuma infraestrutura e se veem sem acesso aos direitos humanos básicos da vida”, diz.
Na Justiça
No pedido de reintegração de posse encaminhado em 2013, a proprietária do terreno, a Granja Werneck, alegou que planejava um fim social para a área, a construção de 8 mil habitações do Minha Casa, Minha Vida.
O convênio para construção, segundo Otávio Werneck, um dos sócios, foi fechado no mesmo ano, antes de as primeiras famílias ocuparem o local. “O projeto é para atender 40 mil pessoas, diz ele.
Em 2015, a Justiça mineira autorizou o despejo dos moradores, decisão suspensa posteriormente pelo STJ.
“Cada decisão judicial traz de novo angústia e incerteza. Mas também traz uma consciência política que é uma verdadeira escola”, diz Charlene, para quem esses momentos unem a comunidade em torno de protestos por apoio e visibilidade.
O atual prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PHS), prometeu, durante a campanha, que evitaria o despejo das famílias.
“A Izidora já é um bairro consolidado”, disse ele após a vitória nas urnas.
Em março, a prefeitura desistiu formalmente de uma das ações relacionadas à Izidora, o que não impede o ingresso de novas ações de reintegração no futuro.
“Essa segurança é provisória. Estamos mobilizadas em busca de uma solução definitiva para a ocupação, dando aos moradores uma vida digna”, diz a advogada Thais Firmato.
Entre momentos de tensão e de tranquilidade, as assembleias semanais continuam nas vilas Rosa Leão, Vitória e Esperança. Enquanto a Justiça não define o destino da Izidora, casas ganham muros e cores, lonas cedem lugar a tijolos e ruas recebem placas com nomes – todas encomendadas pelas coordenadoras.
“Por alguns momentos eu me esqueço do formigueiro que era quando tudo começou”, relembra Edna, enquanto tranca as portas da associação de moradores depois de mais um dia de trabalho.