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“Mercado procura formar crianças como consumidores eternamente desejantes e insatisfeitos”

Fonte: Caros Amigos

Por Marco Weissheimer, do Sul 21

Foto por Guilherme Santos / Sul21
Foto por Guilherme Santos / Sul21

Erotização da infância, promoção dos valores e da cultura do consumismo, exclusão social, coleta clandestina de dados, exposição a vários tipos de práticas abusivas: essas são algumas das ameaças que habitam o reino da publicidade voltada para o público infantil hoje. Nos últimos dez anos, a legislação brasileira estabeleceu várias restrições a esse tipo de publicidade, mas a diversificação e sofisticação tecnológica abriu novos espaços para várias formas de propaganda subliminar que vão desde práticas clássicas de merchandising a brinquedos tecnológicos capazes de gravar a conversar de crianças e coletar esses dados.

“Uma pesquisa realizada no ano passado pelo Datafolha mostrou que 60% da população brasileira adulta é favorável ao completo banimento da publicidade voltada para o público infantil. Isso reflete muito o que acontece dentro das famílias. No dia-a-dia, as crianças são bombardeadas por esse assédio consumista. Isso vai bater nos pais, mães e em todas as pessoas que são responsáveis por essas crianças que não conseguem se defender sozinhas”, diz a advogada Isabella Henriques, diretora de Advocacy do Instituto Alana, organização da sociedade civil criada em 1994 e que desenvolve programas que buscam a garantia de direitos das crianças e de uma vivência plena da infância.

Isabella Henriques esteve em Porto Alegre na última semana participando do ciclo de Cine-Debates “Você tem fome de quê”, na Sala Redenção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que homenageou os 10 anos do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. Em entrevista ao Sul21, ela fala sobre o trabalho desenvolvido na última década, sobre os avanços obtidos e sobre o muito que ainda é preciso fazer para proteger a infância do incessante desejo de lucro do mercado. “As crianças são atingidas com três objetivos: como consumidoras hoje, como consumidoras adultas amanhã e como formadoras de opinião dentro da família. Estima-se que as crianças influenciem em até 80% as compras da família”, assinala.

Qual o balanço do trabalho de dez anos do Instituto Alana sobre questões relacionadas à publicidade dirigida às crianças, em especial os casos de abuso nesta área?

Isabella Henriques: O programa Criança e Consumo nasceu da observação de um problema que não afeta só o Brasil, a saber, o impacto da publicidade sobre o público infantil (até 12 anos de idade) e as consequências geradas por essa publicidade, seja no campo da saúde – como o aumento da obesidade infantil, por exemplo -, seja no campo comportamental no interior das famílias ou ainda em relação à violência alimentada por valores consumistas, onde os bens materiais ocupam um lugar privilegiado. Um estudo recente realizado entre adolescentes em conflito com a lei, na Fundação Casa, de São Paulo, mostrou que metade deles estava lá por problemas envolvendo o tráfico de drogas e metade por crimes patrimoniais, ou seja, roubo e furto. As pesquisas também mostram que esses adolescentes entram no tráfico muito por conta do desejo de receber recursos financeiros para poder adquirir uma roupa ou tênis de marca, um boné, uma moto ou outros bens materiais.

Além disso, esse excesso de consumo traz também um problema de insustentabilidade ambiental que também passa pela infância. Quando vemos o volume de brinquedos que circula hoje estamos falando de muito plástico produzido diariamente. Esse foi o contexto no qual começamos a trabalhar em 2006, quando começamos a planejar o programa Criança e Consumo. Naquele momento, já existiam algumas pessoas que trabalhavam pontualmente com algum desses temas. A nossa ideia, em um primeiro momento, foi juntar essas pessoas em um conselho consultivo para fomentar a reflexão e o debate sobre os malefícios da publicidade dirigida ao público infantil na sociedade, mais do que promover mudanças de legislação ou obter vitórias no Judiciário. Queríamos, e ainda queremos, chamar a atenção das pessoas para esses problemas para que elas começassem a mudar seus hábitos de consumo e dar exemplos de comportamento não consumista para as crianças.

Desde sempre entendemos que crianças, até 12 anos de idade, não devem ser destinatárias de mensagens publicitárias, pois elas ainda estão em um processo peculiar de formação, não só do ponto de vista físico, mas também cognitivo e psíquico, onde ainda não têm todos os recursos para responder esses estímulos ao consumo à altura. Por mais que uma criança de 10 ou 11 anos de idade já consiga reconhecer uma mensagem publicitária, coisa que uma criança de 4 anos não consegue fazer, ela não entende o caráter persuasivo das mensagens.

Ao longo desses dez anos de trabalho, o nosso projeto atingiu todas as metas traçadas lá atrás, crescendo de uma forma que nem nós esperávamos. Na nossa avaliação, isso ocorreu não apenas em função do nosso trabalho ter sido bem planejado e executado, mas pelo fato de a sociedade querer fazer essa discussão. Uma pesquisa realizada no ano passado pelo Datafolha mostrou que 60% da população brasileira adulta é favorável ao completo banimento da publicidade voltada para o público infantil. Isso reflete muito o que acontece dentro das famílias. No dia-a-dia, as crianças são bombardeadas por esse assédio consumista. Isso vai bater nos pais, mães e em todas as pessoas que são responsáveis por essas crianças que não conseguem se defender sozinhas.

O mercado muitas vezes diz que a responsabilidade é dos pais e que eles, detentores do dinheiro, é que devem definir o que comprar ou não determinado produto. A história verdadeira é que esse pai e essa mãe não têm condições de enfrentar, em igualdade de condições, um investimento bilionário dirigido sobre as crianças em todos os lugares. A publicidade fala com as crianças em todos os lugares, a todo momento. Em todos os lugares em que elas estão, há publicidade dirigida ao público infantil, ainda que tenhamos, no Brasil, uma legislação bastante rigorosa neste sentido. Como sofrem esse problema no dia-a-dia, os pais e as mães apoiam a nossa causa e o nosso trabalho.

Em termos concretos, o que se conseguiu neste período de trabalho?

Um dos resultados mais importantes foi ter colocado esse tema na agenda de debates da sociedade e dos meios de comunicação. Ele chegou a ser tema de redação do Enem há alguns anos, impactando diretamente todos os jovens que fazem redação, assim como seus familiares, professores e jovens que realizaram a prova nos anos seguintes. Em 2014, houve a aprovação da resolução 163 pelo Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Conanda) que clarificou ainda mais o teor da legislação brasileira. Essa resolução definiu que uma publicidade que tenta persuadir uma criança a consumir um determinado produto é abusiva. Mais recentemente, tivemos vitórias muito expressivas no Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão máximo para resolver questões relativas à legislação federal.

A partir de 2006, o Instituto Alana começou a fazer uma série de denúncias sobre práticas publicitárias que considerava abusivas. Essas denúncias foram sendo acolhidas pelos órgãos competentes que as levaram ou para uma esfera administrativa, como o Procon, para a aplicação de uma multa, ou para a esfera judicial, ingressando com uma ação civil pública. Essas ações foram passando da primeira para a segunda instância e chegaram ao Superior Tribunal de Justiça. Nos dois primeiros casos que chegaram lá, o STJ entendeu que as empresas deveriam ser condenadas.

Que casos foram esses?

Estou falando de campanhas publicitárias da Bauducco e da Sadia realizadas há cerca de dez anos. Isso indica que a tendência que já estava aparecendo nos estados, em primeira e segunda instância, se consolida no Superior Tribunal de Justiça. Isso é muito importante. Do ponto de vista legal, a gente sabe que só temos o cumprimento de uma legislação quando ela passa a ser fiscalizada e quando está presente a certeza da punição daqueles que a violarem.

A maioria das denúncias feita pelo instituto até aqui envolve a área da alimentação?

 Não. Tem muita denúncia na área da alimentação, mas não só nela. Há várias denúncias envolvendo publicidade de brinquedos, ações de marketing realizadas em escolas e outros tipos de prática. Tem de tudo. O mercado que fala com a criança é muito vasto. As empresas da área da alimentação já estão envolvidas neste debate, há muitos anos, mundo afora. A relação da obesidade infantil com a publicidade de alimentos ultraprocessados, com excesso de sódio, açúcar, gordura saturada, bebidas de baixo valor nutricional – leia-se, refrigerantes – já foi pacificada pela pesquisa científica. As empresas nem negam mais essa relação da publicidade com a obesidade. O debate que existe hoje é em que medida a publicidade é um fator preponderante neste processo. O que o mercado alega é que a publicidade é um fator pequeno neste processo, entre muitos outros. Nós defendemos que não é um fator menor e que, muitas vezes, é definidor no desenvolvimento da obesidade infantil.

Algumas pesquisas mostram que se, simplesmente fosse banida a publicidade desses produtos alimentícios, a obesidade infantil diminuiria em até 20%, sem que nenhuma outra política pública fosse implementada. No caso do Brasil, estamos falando de 15% de crianças com obesidade e 30% com sobrepeso. Em termos absolutos, temos, portanto, cerca de 5 milhões de crianças com obesidade infantil. Não se trata daquela criança que “está gordinha”, como se costuma dizer, mas de crianças que já estão com um problema grave de saúde, que é a porta de entrada das chamadas doenças crônicas não transmissíveis, que são a principal causa de morte no Brasil. Então, essa publicidade vai acabar gerando um gasto público enorme na Saúde pública e também na Previdência, pois essas crianças vão virar adultos obesos que sairão do mercado de trabalho mais cedo por problemas de saúde.

Nós fazemos denúncias em várias áreas, mas os casos envolvendo alimentos acabam ganhando maior visibilidade e tem um entendimento mais pacificado nos tribunais. O Judiciário ainda tem certa dificuldade de entender que uma publicidade de brinquedo, por exemplo, é abusiva. Há uma dificuldade de entender o dano psicológico e cognitivo que é mais complexo de se medir. Estamos falando da formação de valores consumistas e materialistas na sociedade. Ainda que isso não seja tão concreto, como aparece no caso da obesidade, é possível ver as consequências disso na formação da sociedade. Temos objetos de desejo sendo mudados a cada semana, pois a publicidade se renova a cada semana. Assim, hoje eu quero essa boneca, amanhã eu quero outra e assim por diante.

A ideia é ter um consumidor eternamente desejante que nunca está satisfeito. O mercado não quer um consumidor satisfeito que compre uma geladeira na expectativa de que ela vai durar vinte anos ou mais. Ele quer consumidores desejantes e insatisfeitos, sempre a procura de um novo lançamento. Para tanto, procura formar as crianças, desde pequenas, nesta lógica. As crianças são atingidas com três objetivos: como consumidoras hoje, como consumidoras adultas amanhã e como formadoras de opinião dentro da família. Estima-se que as crianças influenciem em até 80% as compras da família.

Hoje, além da publicidade tradicional na televisão, rádio e veículos impressos, temos uma profusão de plataformas e formas diversificadas de novas linguagens publicitárias. Isso torna mais complexo esse trabalho de identificação de práticas abusivas, não?

Sim. No caso do Brasil, talvez ainda demore um pouco para aquela propaganda tradicional dos intervalos de programas de televisão deixar de existir, mas já um consenso no mercado de que ela está com os dias contados. Ela vai deixar de existir. Hoje temos empresas que propiciam a televisão por demanda, de modo que a criança pode assistir seu desenho animado sem nenhum tipo de publicidade. Como é que a publicidade vai falar com a criança neste caso. Ela estará dentro do desenho na forma de um merchandising, com um personagem tomando um picolé da marca “x” ou algo do tipo. Essas práticas são muito mais perniciosas, na medida em que são muito mais difíceis de serem distinguidas pelas crianças e identificadas como mensagens publicitárias, que é o já acontece na internet e nos jogos eletrônicos. A criança pode conseguir identificar um banner, mas quando a mensagem publicitária aparece sob a forma de um conteúdo da programação, a identificação é bem mais difícil. Hoje, a publicidade está em todos os espaços.

Com o crescimento desta discussão no Brasil houve uma mudança muito grande do comportamento do mercado que saiu um pouco dos veículos tradicionais e foi para outras plataformas, o que inclui também espaços como as escolas que passaram a ser muito procuradas para ações de marketing mascaradas como ações educativas. Há uma gama imensa de empresas, de todas as áreas, fazendo isso. Temos a Tang, por exemplo, falando da importância da atividade física e promovendo a venda do seu suco. Ou a Danone falando da importância do consumo de lácteos e promovendo atividades educativas sobre a alimentação. A escola é um ambiente mais difícil de ser fiscalizado. Para saber o que está sendo veiculado na televisão, basta você sentar e gravar os programas. O que acontece dentro das escolas está dentro dos muros das mesmas. Quem sabe o que está acontecendo é quem está lá dentro, professores e diretores. Nem os pais sabem direito o que acontece lá dentro. Às vezes ficam sabendo só depois e aí recebemos a denúncia. Nosso foco é conversa com a escola e denunciar a empresa.

Esse tipo de ação já foi condenado pela ONU que, em seu relatório sobre direitos culturais, traz recomendações aos países para que proíbam por completo a publicidade para públicos menores de 12 anos e, em alguns casos, de 16 anos. Essa recomendação diz expressamente que a escola tem que ser um espaço livre de ambiente mercadológico de marcas e publicidade.

Como você referiu, essa publicidade se sofisticou. Um exemplo disso é o fenômeno dos youtubers mirins, crianças que viraram celebridades com números absurdos de seguidores pelo país inteiro. Essas crianças não estão mais só gravando aqueles vídeos com brincadeiras como faziam no início. Elas estão anunciando, estão sendo contratadas por empresas para fazer merchandising no meio da fala delas. Elas mostram produtos, falam de marcas. Existem alguns vídeos chamados de “recebidos”, onde elas exibem os produtos que recebem. Então, essa publicidade se dá por meio de contratos firmados com as empresas ou elas simplesmente mandam seus produtos para serem exibidos. Meninos e meninas fazem isso. Essa prática já se sofisticou a ponto de as crianças gravarem dentro de estabelecimentos comerciais.

Estamos falando de crianças com que idade, neste caso?

Estamos falando de crianças desde os 5 anos de idade, tanto quem está no vídeo como quem está assistindo. Existem youtubers mirins muito novos que vão crescendo e os seus canais vão se modificando, assim como a sua audiência. É óbvio que pais e mães não querem o mal para seus filhos. Muitas vezes, a família acha que a criança está em um ambiente protegido, livre de problemas mais graves como a pedofilia. No entanto, a criança está sendo totalmente bombardeada pela publicidade. Para não falar de uma situação que é nova e ainda incipiente no Brasil que é a coleta de dados de crianças na internet. Do mesmo modo que ocorre conosco, que ainda assinamos termos de uso em aplicativos autorizando acesso a nossos dados. Nos Estados Unidos, há uma legislação que proíbe a coleta de dados de crianças com menos de 12 anos de idade. Aqui no Brasil não temos uma legislação específica como essa. Esses dados estão sendo coletados aqui no Brasil? Se estão, quem está coletando? Esses dados serão vendidos?

Essa é uma discussão que vai muito além da questão do consumo. No plano estrito do consumo, uma das conseqüências dessa coleta de dados é que a criança começa a receber publicidade direcionada. Nós, adultos, já conhecemos bem essa experiência. Às vezes, você está na frente do computador e fala com alguém que está pensando em comprar um carro ou trocar um óculos. Em seguida, aparece uma publicidade sobre esses produtos na sua tela. É algo incrível. Estão lendo a minha mente? Não, estão escutando o que estamos falando e estamos autorizando isso na hora em que assinamos aqueles termos de uso em diversos aplicativos. Isso está acontecendo com crianças também. Há brinquedos tecnológicos como a boneca Cayla, proibida recentemente na Alemanha, por possuir um microfone e uma conexão Bluetooth embutidos. Essa boneca conversava com as crianças e captava a conversa delas, sem que elas tivessem a menor noção de que isso estava ocorrendo. O que a empresa fabricante pretende fazer com esses dados captados? Utilizá-los para fabricar novos brinquedos?

Além das empresas que fabricam produtos destinados ao público infantil, temos também o setor da publicidade e da mídia que, muitas vezes, invoca o tema da liberdade de expressão para contestar proibições e limitações neste tipo de propaganda. A resistência desse setor segue forte?

Nós tivemos um avanço aí nestes últimos dez anos. Há um consenso hoje em torno da necessidade de proteger a criança da publicidade comercial. O dissenso está em que medida isso deve ocorrer. A falta de limites estava gerando uma situação de muita violação de direitos. O mercado também foi obrigado a dar alguma resposta a esse quadro do ponto de vista da comunicação. Essa questão da liberdade de expressão era bastante utilizada lá por 2007, 2008 pelas agências de publicidade, anunciantes e veículos. Hoje já não é mais assim. A liberdade de expressão tem limite e esse limite está posto pela Constituição. No caso da publicidade, ele é regulado pela ordem econômica. A publicidade tem um único objetivo: vender! Nem deveria se falar em liberdade de expressão em relação à publicidade. Concedendo que há uma produção artística na produção de uma publicidade, ainda assim a liberdade de expressão aí tem limites. Temos que colocar na balança os direitos das crianças de um lado e o das empresas fazerem propaganda de seus produtos do outro.

Esse argumento tem sido pouco utilizado hoje em dia. A discussão é muito mais profunda e de melhor qualidade também. Há algumas organizações que chegaram agora neste debate e ainda repetem esse argumento da liberdade de expressão. Mas quem participou desse debate na última década, já está com outro entendimento, entre outras coisas porque a população também exige que essas práticas sejam fiscalizadas. Os veículos estão tentando se adaptar a essa nova realidade.

Considerando essa necessidade de adaptação, é possível dizer que houve de fato um avanço de consciência por parte do mercado, ou ele está, fundamentalmente, tentando descobrir outras possibilidades de vender os seus produtos?

Essa é uma pergunta difícil de responder. Eu acredito, pela experiência que tive ao longo dos últimos dez anos em torno desse debate, que as empresas são formadas por pessoas que tem suas famílias e seus filhos, e que elas nem sempre tem a mesma posição da instituição para a qual trabalham. Eu já ouvi muitos comentários de apoio neste sentido. Isso, de alguma forma, faz com que as empresas também comecem a mudar um pouco de posicionamento, pois os seus funcionários também estão sofrendo essas conseqüências dentro de suas casas. Por outro lado, é fato que as empresas querem vender e, por isso, seguem procurando brechas para fazer isso acontecer. E é muito mais fácil vender para uma criança do que vender para um adulto. Não é à toa que o mercado vai com tanta força falar com o público infantil. Se uma publicidade diz para uma criança que ela precisa daquele produto para ser feliz, ela vai querer aquele produto. Aí que entra o papel da fiscalização e do Judiciário.

Tem gente que procura minimizar essa influência dizendo que, na sua infância, viu muita publicidade e isso não trouxe grandes problemas. As realidades são distintas, o volume de publicidade hoje é imensamente maior e muita coisa que era considerada normal no passado hoje é proibido, como a publicidade de tabaco, por exemplo. Se olharmos a publicidade do tabaco ao longo da história, veremos uma publicidade inclusive com o uso de crianças. Há uma delas que costumamos usar como exemplo e que mostra uma mãe com um bebê recém-nascido no colo e uma frase dizendo algo como: “entre uma mamada e outra, alivie o seu estresse fumando um cigarro”. Hoje, isso seria considerado criminoso. Na época em que foi veiculada, era considerado algo normal e rotineiro. Então, estamos às voltas também com uma mudança de paradigma que tem o seu próprio tempo.

Como você definiria a legislação brasileira nesta área?

Já o artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor proíbe a publicidade abusiva. Entre as práticas proibidas, expressamente está lá aquela que se aproveita da deficiência de experiência e de capacidade de julgamento da criança. A legislação tem um conceito aberto, mais subjetivo, sobre o que é essa deficiência, cuja avaliação depende de cada caso. Isso dá margem a discussões. Nós temos um entendimento bastante restritivo desse artigo. Se o considerarmos junto com o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente e o artigo 227 da Constituição Federal que diz que a criança deve ter seus direitos garantidos com prioridade absoluta pela família, pelo Estado e pela sociedade, isso basta. Os recentes entendimentos do STJ caminham nesta direção, considerando que o simples fato de uma publicidade se dirigir à criança já a torna abusiva. Esse é o grande avanço que tivemos nestes últimos dez anos.

Por outro lado, é um fato que, hoje, ao assistirmos à programação de um canal infantil, temos ainda uma avalanche de publicidade, o que reforça a necessidade de seguirmos debatendo esse tema. Um canal como a Disney, por exemplo, não tem publicidade, mas toda a sua programação está vinculada com produtos. Essa é uma discussão mais profunda. Então, temos avanços, mas também temos muito trabalho pela frente.

Há quem considere que as crianças nascidas na era digital estariam de certo modo mais preparadas para enfrentar essa nova realidade. Você concorda com isso?

Esse é um tema super espinhoso. Fala-se muito hoje sobre os nativos digitais. De fato, a criança nasce hoje já muito envolvida com a tecnologia digital. Ela pode saber fazer um upload, um download, produzir um conteúdo e várias outras coisas. Ela pode dominar a tecnologia como ferramenta, mas não tem capacidade ainda para se defender de abusos. Hoje, um dos maiores consumos de internet das crianças está nas redes sociais. Ainda que o Facebook, por exemplo, seja apenas para maiores de 12 anos de idade, muito por conta da legislação americana sobre a coleta de dados, há muitas crianças menores de 12 dentro do Facebook.

Essas crianças não tem a dimensão da vastidão da rede e da natureza da internet como uma praça pública. Os filtros existentes não são suficientes para protegê-las de abusos. Qualquer um pode fazer um print de uma foto e publicar. Então, a criança pode saber como usar determinada ferramenta, mas ainda está desenvolvendo a sua capacidade de cognição e de aprendizado. Já é difícil para nós, adultos, lidar com essa realidade. Todo dia vemos o caso de alguém que se deu mal porque fez um determinado comentário em uma rede social ou porque postou alguma coisa. Esse debate é muito mais amplo e complexo, envolvendo também questões como a erotização precoce. Já há pesquisas mostrando que a publicidade que fala com meninas tem uma linguagem diferente da que fala com meninos. E não é que uma seja toda rosa e a outra toda azul. A publicidade que fala com meninas é muito erotizada, trabalhando o tempo todo com a ideia de sedução. As diferenças são bem mais sutis e as crianças estão numa condição muito vulnerável neste ambiente.

Convido todas as pessoas a acessarem o site do Alana e, dentro deste, o dos diversos programas do instituto, entre eles o Criança e Consumo que traz muitas informações sobre esse debate e também tem um espaço para denúncia de práticas abusivas.