É preciso resistir mais que nunca e lutar para impedir os retrocessos. A maioria da população só tem a perder com o arranjo político em exercício.
Por Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI) – Nathalie Beghin e Iara Pietricovsky*
As Nações Unidas abrigaram recentemente em Nova York uma reunião de alto nível para discutir o progresso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um dos temas em discussão foi o Objetivo 2, batizado de Fome Zero, inspirado na bem-sucedida experiência brasileira de eliminar a fome, atestada pela FAO em 2014.
Note-se a relevância que o Brasil já teve no cenário internacional, pois suas políticas públicas foram capazes de influenciar um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, assinada em 2015 por 193 países.
Em função desse debate global, começou a circular a informação de que o Brasil estava retrocedendo em um dos objetivos, o de erradicar a fome, pois a insegurança alimentar e nutricional voltou a assombrar o país.
Dados oficiais revelam que a pobreza vem recrudescendo. Segundo o IBGE, 9,2% de famílias tinham em 2015 rendimento per capita inferior a um quarto de salário-mínimo, um dos indicadores de medição da fome. Em 2014, essa proporção era de 7,9%, o que corresponde a um aumento de 16% em apenas um ano.
Como a redução da pobreza no Brasil nos últimos anos esteve fortemente atrelada à melhora real dos rendimentos das famílias, que vêm caindo desde 2014, a chaga da miséria se torna novamente uma questão em nosso país. O Banco Mundial diz a mesma coisa. Em estudo publicado recentemente, o Banco calcula que o número de pessoas vivendo na pobreza extrema no Brasil deverá aumentar entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o final de 2017.
Organizações da sociedade civil vêm produzindo dados na mesma direção. A Fundação Abrinq lançou relatório que evidencia que cerca de 6 milhões de crianças vivem atualmente na pobreza extrema, o que equivale a toda a população da cidade do Rio de Janeiro. Já a Oxfam Brasil nos informa que apenas 6 homens brancos detém renda equivalente à metade mais pobre da população brasileira, que equivale a 100 milhões de pessoas!
Apesar de evidências indiscutíveis, pois produzidas por entidades idôneas, o governo em exercício no Brasil tem a ousadia de afirmar que está tudo bem. Em relatório elaborado por conta da reunião de Nova York acima mencionada, o presidente da República chega a afirmar que tal relatório “constitui, também, exercício de prestação de contas, em primeiro lugar perante a sociedade brasileira, das medidas que nosso governo vem adotando em nome de um país mais próspero e justo, com oportunidades para todos – até mesmo para as gerações futuras”. A pergunta que não quer calar é: como o aumento da fome e da miséria pode ser resultado de medidas inclusivas e justas?
A afirmação do Temer no relatório brasileiro revela que o atual governo se mostra insensível ao aumento da pobreza e da fome, bem como da destruição dos recursos naturais do país. O Inesc vem mostrando, por meio de uma série de notas e textos, que todas as medidas implementadas nos últimos meses com o pretexto de “combater a crise” afetam, única e exclusivamente, os que menos têm.
Estamos nos referindo à emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos e que irá diminuir em termos reais os recursos disponíveis para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional, entre outros; aos cortes orçamentários que afetam proporcionalmente mais as políticas voltadas para os mais vulneráveis; à reforma trabalhista que resulta na precarização das relações de trabalho e na diminuição da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras; à implementação de parcerias público-privadas que contribuem para enfraquecer ainda mais o combalido Estado e sua capacidade de promover políticas de combate às desigualdades, fome e pobreza além de constituírem-se em mecanismos de corrupção; à reforma da Previdência que penaliza a base da pirâmide e, especialmente mulheres e negros.
Especialistas como Luciana Jaccoud do Ipea mostram que a reforma da Previdência Social irá excluir 44% das mulheres urbanas ocupadas da aposentadoria, além de aumentar as desigualdades entre homens e mulheres, e de elevar a desproteção no campo. Estima-se que essa exclusão afete entre 60% e 80% dos que se aposentariam.
Temos ainda as medidas de flexibilização das leis ambientais, que impactarão os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais; a reforma ministerial que ceifou a institucionalidade voltada para os excluídos (agricultores familiares com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; mulheres com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres; negros com a extinção da Secretaria de Igualdade Racial; povos indígenas com o esvaziamento da FUNAI); e o aumento de impostos indiretos (PIS e Cofins nos combustíveis) que agrava a regressividade da carga tributária fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais.
A extorsão dos mais vulneráveis somam-se às benesses concedidas aos mais ricos: o direito de invadir terras indígenas e florestas para expansão do agronegócio e das mineradoras; o perdão de dívidas de grandes empresas; a privatização de serviços públicos que abre novos mercados para o setor privado; e a implementação de parcerias público-privadas que transformam a infraestrutura, em todos os níveis federativos, na nova fronteira de acumulação e lucratividade para investidores nacionais e estrangeiros.
Enfim, eliminam-se os obstáculos (institucionais, sociais, ambientais, culturais e trabalhistas) que possam postergar ou afetar a rentabilidade esperada pelo setor empresarial.
Na lógica dos governantes de plantão, comprovadamente corruptos, pouco importa a volta da fome, já que conseguem, mesmo sem voto e sem popularidade, a façanha de assegurar o enriquecimento das elites. Não há qualquer interesse, nem vontade política, de caminhar na direção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Por isso é preciso resistir mais que nunca, e lutar para impedir os retrocessos porque a grande maioria da população brasileira só tem a perder com esse arranjo político em exercício.
Nós – ONGs, movimentos sociais e ativistas do campo democrático e popular – temos a obrigação legal e moral de denunciar diuturnamente as violações de direitos humanos perpetuadas por esse governo temerário. Temos um longo caminho pela frente, mas a causa é justa e é isso que mantém nossa chama viva!
*Nathalie Beghin e Iara Pietricovsky são integrantes do Instituto de Estudos Socioeconômicos/INESC e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
Fonte: Carta Capital
Foto: Wikimedia Commons