Estigmatizados, manifestantes monitorados por militar infiltrado vão a julgamento em São Paulo
Fonte: The Intercept Brasil
Por Eliane Gonçalves e Matheus Pichonelli
<Atualização (22/9):
Não nos calarão!
Lutar Não é Crime!>
“Peço socorro, peço ajuda, a situação é insustentável e eu não consigo mais viver esse pesadelo”. É assim que cineasta Janaína Roque, 28 anos, conclui a carta de 15 páginas que dá detalhes do que aconteceu com ela desde que foi presa, em setembro de 2016, momentos antes de participar de um protesto, em São Paulo, contra Michel Temer.
A manifestação foi convocada para 4 de setembro, quatro dias após o impeachment de Dilma Rousseff. Na época, Janaína tinha pouca experiência em mobilizações e usou o Facebook para entrar em contato com outras jovens que, como ela, tinham medo de ir sozinhas para o ato. Preocupada com a violência policial que havia marcado os protestos da semana anterior, também entrou em um grupo de Whatsapp de pessoas que ajudavam a se preparar para situações de emergência.
“A situação é insustentável e eu não consigo mais viver esse pesadelo”
Foi assim que, munida com um pacote de gaze, ataduras, esparadrapo, soro fisiológico, luvas, máscara cirúrgica, um Dorflex e uma bisnaga de Cataflan, ela se dirigiu até o Centro Cultural São Paulo junto com outras 21 pessoas, que acabaram surpreendidas por mais de 30 policiais fortemente armados, oito viaturas e um helicóptero à sua espera. Todos foram presos e encaminhados para um ônibus que também já estava no local.
Do grupo, apenas um integrante não embarcou com eles. Balta Nunes, 37, foi levado para uma das viaturas. Ele havia se
aproximado dos jovens usando o aplicativo de paqueras Tinder e se apresentando como militante de esquerda. Dias mais tarde, seria identificado como um capitão do Exército que se infiltrou no grupo para supostamente armar o flagrante.
A presença de um espião do Exército no grupo que foi levado à prisão causou polêmica e assombro mas, após a ação, Willian Pina Botelho, o nome verdadeiro do militar, foi promovido a major.
O Exército começou negando a participação do capitão nas detenções dos manifestantes. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, também. Depois, o comandante do Exército, General Villas Boas, em entrevista à Rádio Joven Pan, disse que a ação toda foi toda planejada em “absoluta interação” com o governo do Estado. Em dezembro, a Procuradoria de Justiça Militar, órgão ligado ao Ministério Público Federal, arquivou um procedimento investigatório preliminar sobre o caso sem que as contradições fossem esclarecidas.
“Triste do país em que seus cidadãos precisam aguentar tudo de boca fechada”
Três adolescentes do grupo foram encaminhados para a Fundação Casa. O restante, incluindo Janaína, foi para o Departamento Estadual de Investigações Criminais da Polícia Civil (DEIC). Após uma audiência de custódia, o grupo foi liberado por decisão do juiz Paulo Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que considerou a prisão ilegal.
“Vivemos dias tristes para a nossa democracia. Triste do país em que seus cidadãos precisam aguentar tudo de boca fechada”, escreveu o magistrado na decisão que parecia ter encerrado o assunto.
Mas o episódio voltou a causar transtorno aos manifestantes em 28 de agosto, após a juíza Cecília Pinheiro da Fonseca, da 3ª Vara Criminal de São Paulo, acatar a denúncia do Ministério Público de São Paulo que acusa Janaína, junto a outros 17 jovens, por formação de quadrilha e corrupção de menores.
A primeira audiência do processo, que não foi desmembrado para análise do caso de cada acusado, acontece nesta sexta (22).
Novo processo
A acusação é baseada nos objetos encontrados com os manifestantes. Além dos itens de primeiros socorros, eles levavam telefones celulares e usavam capuzes e vestes escuras “para evitar serem identificados quando da prática de eventual crime”, conforme a denúncia do MP-SP. Uma acusação que chamou a atenção da magistrada. Na decisão em que acata a denúncia, a roupa dos manifestantes é citada nove vezes.
Segundo a defesa de uma das acusadas, a peça acusatória “constrói uma narrativa extremamente complexa sem qualquer base probatória além de indícios circunstanciais e sem guardar congruência com o boletim de ocorrência ou o próprio relatório da autoridade policial, o qual, por sinal, dedica grande parte de suas folhas a tecer opiniões políticas que não guardam relação pessoal, temporal ou espacial com o fato ora em discussão”.
Ao acatar a acusação, a juíza citou o jurista Guilherme Nucci, uma referência na doutrina do direito penal, para justificar a abertura do processo: “o perigo abstrato para a paz pública é evidente e não precisa ser provado; afinal, o Estado não quer a existência de agrupamentos organizados e estáveis, prontos a delinquir a qualquer momento”.
“Se eles foram presos no local e lá há câmeras de segurança, por que não investigar?
Para o advogado e colunista do portal jurídico Justificando, Brenno Tardelli, “essa referência utilizada pela juíza, com todo o respeito ao autor, não faz sentido em um Estado de Direito que pressupõe provas para que qualquer pessoa seja processada. Afinal, da mesma forma que o Estado não quer ‘a existência de agrupamentos organizados e estáveis’, não é de interesse de ninguém que pessoas inocentes sejam processadas, principalmente se sobre elas não recai nenhuma prova que não seja a ilegal e incompetente infiltração e um oficial do exército em um grupo civil’, analisa.
Ele critica o fato de o Ministério Público omitir da acusação a infiltração de um oficial do Exército em um grupo civil, “como nos sombrios tempos de SNI, para fazer um pífio trabalho e prender pessoas que não cometeram qualquer conduta ilícita.”
“Se eles foram presos no local e lá há câmeras de segurança, por que não investigar? Se o oficial do Exército se infiltrou em grupo de Whatsapp como trabalho de ‘inteligência’, por que não juntar no processo essa prova? Qual o receio? Que eles sejam inocentes? ”, questiona Tradelli.
Para a cientista política Fhoutine Marie, autora da tese “Terrorismo, câncer e seus combates” para a PUC-SP, os métodos de combate ao inimigo do Estado são como as formas da medicina de combate à doença:
“No corpo submetido à vigilância da medicina é possível identificar e combater células cancerosas antes da formação do tumor. É de modo semelhante que a legislação de combate àqueles que o Estado identifica como inimigos: vigilância intensa e ostensiva a fim de eliminar potenciais ameaças antes que elas possam se agrupar e dar forma a algo que o Estado vê como danoso à sua saúde.”
Segundo a especialista, é preciso ter em mente que este é um padrão de punição que visa combater não o crime, mas as motivações ideológicas. “Isso é muito perigoso, sobretudo no momento em que estamos vivendo, onde a diferença é tratada como doença ou crime”, diz.
Para o advogado Hugo Albuquerque, que defende sete dos jovens acusados, o processo é paradigmático. “Mostra a degeneração dos direitos civis no Brasil”, diz.
Currículo marcado
Entre uma data e outra, Janaína Roque deu início a uma maratona: entrou em contato com organizações de direitos humanos nacionais e internacionais, participou de audiências públicas e seminários, conversou com jornalistas, religiosos e advogados, ajudou a organizar um abaixo assinado.
“Se você escrever meu nome no Google, é o que aparece né?”
A energia de Janaína vem do medo. “Descobri que o medo move montanhas”, diz a jovem, que tem dormido pouco e já foi demitida de dois empregos justamente porque passou a ter uma passagem pela prisão no currículo. “Se você escrever meu nome no Google, é o que aparece né?”, explica a recém-formada estudante de cinema que ficou sabendo por amigos o motivo das demissões.
O processo também impactou a vida de Gabriel Cunha, 19 anos. Desde que virou réu, o jovem não sai mais do quarto. A mãe, Rosana Cunha, explica que o estudante entrou em um quadro de depressão que vem sendo tratado com medicamentos e terapia. “Ele não sai de casa. Uma semana atrás, eu consegui levá-lo pra dar uma volta. Mas ele não quer ir em lugar que tenha gente. Ele está com medo, com pânico”.
Gabriel é acusado de ter levado uma barra de ferro para o encontro. Tanto ele quantos os outros participantes do grupo negam a versão e dizem que a barra foi plantada pela polícia. Para Rosana, o fato de Gabriel ter participado do movimento de estudantes secundaristas que ocupou escolas, denunciou a máfia de merendas e atrapalhou os planos do governo de São Paulo de fechar salas de aula teria garantido ao jovem o “tratamento especial” na hora do flagrante.
Desde que ganhou destaque na vida política, Gabriel foi expulso da Escola Técnica do Estado Basilides de Godoy onde estudava, não conseguiu vaga em outra escola pública e, se o tratamento ajudar, vai conseguir terminar o ensino médio este ano em uma escola privada.
A defesa de Gabriel pediu o acesso às imagens do Centro Cultural São Paulo, onde o grupo foi preso, para mostrar como a barra foi parar numa mochila apontada como sendo dele. As imagens também podem ajudar a confirmar se o grupo estava mesmo com vestes pretas, como desconfia a juíza – já que agora pode ser considerado criminoso usar roupas escuras.
A magistrada concordou com o pedido, mas dá a entender que não quer ter muito trabalho com isso e que o ônus da prova pode cair no colo do acusado:
“Defiro o pedido de expedição de ofício ao Centro Cultural Vergueiro para que forneça as imagens das câmeras de segurança, referente ao dia dos fatos, salientando, contudo, que é do conhecimento deste juízo que tais imagens somente são mantidos (sic) pelo prazo de 60 (sessenta) dias; a providência é deferida para evitar futura alegação de cerceamento de defesa”.
A juíza considerou frágeis ou pouco interessantes as outras provas, como as conversas do grupo no WhatsApp, que ajudam a mostrar que o grupo não se conhecia nem estava disposto a promover os supostos atos de vandalismo. Ou o contato com o grupo de Resgate e Apoio, que Janaína procurou dias antes para se evitar justamente situações de violência. Na mesma semana, a estudante universitária Deborah Fabri tinha sido atingida por estilhaços de uma bomba lançada pela polícia e perdeu um olho.
Essas conversas só podem ser resgatadas em equipamentos de terceiros, já que os telefones celulares do grupo continuam detidos com a polícia. As conversas de Janaína estão no celular do marido, que também entrou no grupo dias antes, mas não foi ao protesto.
Rosana, mãe de Gabriel, está preocupada com a situação do filho. Acha que existe uma pré-disposição a considerar os jovens culpados: “Deu tudo errado na operação, a impressão que me dá é que eles ficaram com vergonha do que fizeram e resolveram descontar nos meninos, entendeu? Agora estão buscando prova a qualquer custo para incriminar os meninos de uma coisa que eles não fizeram, para que eles [Governo de São Paulo e Exército] não saiam mal na história”.
Felipe Paciullo, 28, também guarda conversas de WhatsApp para tentar provar que ele sequer ia para o protesto e estava no Centro Cultural para fazer seu Trabalho de Conclusão de Curso de jornalismo. O resultado do trabalho é um livro sobre o mercado fonográfico que já foi depositado na discoteca do Centro Cultural. Na apresentação, os autores fazem referência à prisão:
“Este trabalho representa o resultado de quatro anos de quatro jovens que, entre risadas e rostos franzidos, discos e computadores, reuniões e uma prisão, conseguiram completar seu ciclo de bacharelado”.
Felipe também sente o impacto do processo, mas mede os efeitos de um jeito diferente. Ele riu quando soube que a denúncia do Ministério Público foi aceita: “como é que eu vou me preocupar com uma mentira? Eu tenho as provas da minha inocência”.
Apesar da postura, que soa como um personagem do universo kafkiano sem se dar conta da gravidade da situação, Felipe já faz as contas dos danos, como ter de incluir o endereço do Fórum na rotina ou não conseguir mais tirar um simples atestado de antecedentes criminais para fazer o registro profissional. “O Estado me jogou um peso nas costas e falou: ‘se vira pra carregar e colocar em algum lugar e resolver’. Assim, do nada”.
Conseguindo ou não provar a inocência, Felipe já sabe que as marcas desse processo vão durar muito tempo: “Se eu saio da empresa em que eu estou e vou numa outra, a empresa que vai me contratar vai dar uma vasculhadinha básica na internet para procurar coisa a meu respeito. A primeira coisa que aparece é essa: ‘jovem é preso pela PM ao estudar para TCC’. É meu nome, é meu rosto que tá ali. Eu não tenho nada contra a matéria. A matéria, na verdade, ela me protege, mas é uma coisa que tá eternizada. Enquanto existir esse planeta, em que a internet fizer parte dele, meu rosto tá ali. Eu, quando tiver 50 anos, se eu tiver filho, neto ou eu for, sei lá, fazer um livro da minha vida, tá lá. Fica marcado”.