Boulos sobe a rampa | Coordenador do MTST vai disputar a Presidência
Elo entre os movimentos sociais e a política partidária, o coordenador do MTST lança-se à Presidência
Guilherme Boulos vai subir a rampa. Antes, saca do bolso um cigarro Black mentolado, “horroroso”, estratégia para novamente parar de fumar depois de ter voltado ao hábito “por culpa do impeachment e do Temer”. Repassa detalhes do cerimonial com Pablo Capilé, um aliado recente. Despacha com o faz-tudo Batoré, egresso das hordas da Gaviões da Fiel.
Antes, fora instado a demover a filha Laura, de 7 anos, da ideia de afanar o violão de Caetano Veloso, enquanto Paula Lavigne lembrava propositadamente Sérgio Ricardo, aquele que espatifou o instrumento no Festival de 1967, jogando os cacos sobre o público que o vaiava. Tenso.
Boulos vai subir a rampa, mas não redigiu nenhum discurso, não trouxe uma cola, não treinou, a não ser por 20 anos passados em assembleias e protestos, o que lhe garantiu a retórica envolvente, misto de sindicalista e pastor evangélico, com improvisações ao estilo de Lula sobre a base suingada de um Silvio Santos que tratasse de temas importantes: “Quem quer um teeetoooo???”
Sua “paciência revolucionária” não o deixa afligir-se por ser aquela não a rampa do Palácio do Planalto, mas a passarela reservada aos deficientes físicos que conduz ao palco da Casa das Caldeiras, um espaço de shows em São Paulo.
Boulos vai subir a rampa para o discurso mais importante da vida (ou ao menos daquele sábado, pois no domingo teria uma alvissareira notícia a dar aos acampados da Ocupação Povo Sem Medo em São Bernardo do Campo, “formigueiro” de 8,6 mil famílias). O discurso o lançaria de fato como candidato à Presidência da República, a despeito da convenção do PSOL que aconteceria uma semana depois.
Convenhamos que a convenção decidiria o que está decidido: apenas sacramentaria uma candidatura que, em aparente paradoxo, só deve lograr algum sucesso se for capaz de ocupar um espaço muito maior do que aquele do PSOL.
Não por acaso, Boulos, aos 35 anos, vai subir a rampa numa “Conferência Cidadã”, um ajuntamento de gente diversa, artistas, acadêmicos, frentes e movimentos que independem de partidos políticos.
Ali estão a economista Laura Carvalho, a urbanista Raquel Rolnik, o ex-secretário de Segurança Luiz Eduardo Soares, os escritores Ferréz e Marcelo Rubens Paiva, a secundarista Ana Júlia Ribeiro, o jornalista José Trajano, a turma do Vamos e da Frente Povo Sem Medo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), índios, os representantes do Movimento Negro, as LGBTs, as feministas, a bancada do PSOL no Congresso Nacional acrescida do deputado estadual Marcelo Freixo, um padre e um pastor.
Além da líder indígena Sônia Guajajara, vice na chapa “raiz”. É essa rapa, através do PSOL, que empurra o presidenciável rampa acima, na busca por fazer do jovem líder do MTST a porta da esperança de um progressismo renovado.
“O guarda-chuva eleitoral do Lula, mais cedo ou mais tarde, vai fechar. Espero que não seja em razão do golpe. Mas ele fechará, e nesse momento teremos de apontar um outro caminho”, vaticina Freixo. “O que desejamos construir será maior do que o PSOL, maior que os limites de qualquer movimento social. Ele não poderá ser herdeiro de Lula e será muito diferente do que foi o PT.”
Observação: Assim como Boulos, Freixo não critica o PT sem ressalvar a solidariedade a Lula, de quem defende o direito de disputar as eleições. Um arguto comentarista político alerta: na disputa pela proeminência no pós-Lula, estará à frente aquele que tiver a grandeza de se postar ao lado do velho líder no momento mais difícil da sua vida. Freixo diz não levar em conta esse cálculo. Considera apenas “irresponsável fazer o enfrentamento num momento de ascensão do fascismo”.
“A antipolítica pode ser canalizada para a rebeldia da radicalização da democracia e da mudança sistêmica”, sonha Boulos, cuja docilidade nas conversas privadas torna difícil imaginá-lo na linha de frente das invasões do MTST, sobretudo quando se nota o invariável mocassim de camurça marrom, daquele tipo cujo argumento de venda concentrava-se no solado que não deixava escapar a embreagem do carro.
Sigamos, porém, seu pensamento vivo: “Há várias alternativas no mundo que expressam hoje a antipolítica de esquerda… A França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon, o Our Revolution de Bernie Sanders nos Estados Unidos, a Frente Ampla de Beatriz Sánchez no Chile, os trabalhistas no entorno de Jeremy Corbyn na Inglaterra, o Podemos na Espanha, a tentativa por ora incipiente do Liberi e Uguali na Itália”. Eis a ideia: Boulos vai subir a rampa para inaugurar a era do “partido-movimento”.
Não terá sido a primeira nem a segunda vez que ele se lança à ideia de construir um movimento. Ainda adolescente, pôs-se a imaginar uma dissidência da Gaviões da Fiel. Chamar-se-ia, como diz o poeta ilegítimo, Corações Alvinegros. Saiu literalmente a campo na coleta de assinaturas, guardado por seu pai, o infectologista Marcos Boulos, maior especialista em malária no Brasil, professor titular e ex-diretor da Faculdade de Medicina da USP e do Hospital das Clínicas (claro que, antes de tudo, e muito mais importante do que isso, corintiano).
A dissidência não prosperou, engolida pela mudança de foco do jovem, que trocou Marques, a revelação futebolística do Timão que mais tarde faria sucesso no Atlético Mineiro, por Marx, culpa do amigo André Conti, hoje sócio da Editora Todavia, que o presenteou com um exemplar de O Capital.
O Corinthians merece destacado parágrafo neste arrazoado sobre Boulos. Na verdade, houve uma fase da vida na qual Boulos e o Corinthians se embolaram de maneira tão acachapante que virou um problema escolar. O adolescente vestia-se invariavelmente com a camiseta do clube, como se pode ver em uma das fotos de arquivo exibidas nesta reportagem.
Só pensava naquilo. Convocado a redigir uma composição sobre o pôr do sol, começou a sua ladainha: “Certa vez, no Pacaembu lotado, o sol se punha…”. A professora mandou chamar o pai. Sem maiores consequências (certamente, o médico se encheu de orgulho ao ver que os 10% da cabeça animal do pequeno Boulos estavam 100% preenchidos pelo Timão).
O velho Boulos descende de outro Boulos que chegou ao Brasil na década de 1930, vindo da cidade de Tiro, no sul mediterrâneo do Líbano – e que fugiu com uma conterrânea prometida a outro patrício seu, produzindo então essa linhagem que deu em Guilherme e, mais recentemente, na Laura e na Sofia.
O velhíssimo Boulos exerceu profissões diversas, mas foi sobretudo caminhoneiro. Seu filho Marcos fez diferente: estudou Medicina e arrumou uma paraibana desimpedida, a Ivete, também infectologista do HC e responsável por um importante programa de combate à violência sexual na Faculdade de Medicina da USP, feminista de estirpe. Ivete tem um pé no Recife e leva consigo o espalhafato do nordestino festivo.
Marcos é o contrário, sóbrio, comedido. Em função desse desacordo, firmaram um contrato pré-nupcial: em se concretizando a união, ele se comprometia a levá-la todos os anos ao Galo da Madrugada, o bloco de Carnaval que comprime 2 milhões de foliões no Centro da capital pernambucana. Marcos, coitado, nunca deixou de cumprir a cláusula pétrea.
Dona Ivete é ainda uma aliada improvável dos detratores do filho. Desde a primeira infância, ela o tachava de “terrorista”. Um de seus atentados, conta, consistia em retirar sapatos dos armários e enfiá-los cuidadosamente no vaso sanitário, fazendo-os descer pelo cano até que entupissem completamente a privada.
Adolescente, nos tempos em que trocou Marques por Marx, reuniu a família e avisou: “Daqui pra frente vou dedicar minha vida às causas sociais”. Poderia ter soado como uma bravata, ainda mais que em seu quarto os pôsteres do Corinthians entraram na regra-três, trocados por Fidel Castro e Che Guevara. Mas seus pais não encararam assim e decidiram apoiá-lo no que fosse preciso. Boulos mudou para uma tática ambientalmente mais sustentável: em vez de jogar sapatos no vaso, decidiu doar tudo o que tinha, menos as camisas do Corinthians.
No caminho até aqui, primeiro filiou-se à União da Juventude Comunista do PCB. Decidiu sair quando percebeu uma característica das agremiações que sempre o incomodou, “um posicionamento na esquerda partidária, aquela coisa de se arvorar a falar em nome do povo, mas não se dispor a ouvir o povo ou estar com o povo”. Leu tudo o que podia, Trotski, Lenin, o Manifesto Comunista, Rosa Luxemburgo, Gramsci…
Conti, com quem Boulos dividia a cerveja e a cachaça naquela que era a rede social da época – o boteco –, conta que o amigo possuía, bem jovem, uma respeitável biblioteca de ciências políticas e sociais. Boulos recorda: “À medida que ia me aproximando de uma literatura socialista, achava esquisito aquilo lá. Ler e falar das doutrinas em nome da classe. Mas cadê a classe? Cadê o povo todo, não foi convidado?”
As dúvidas surgiram ali pelo fim dos anos 90 e, na busca por decifrar a esfinge, bandeou-se para o MST. Nada de muito destaque, fez uma ou outra campanha de arrecadação de alimentos para os assentados, mas, enfim, tinha visto pela primeira vez a misteriosa entidade que emergia dos livros, o famoso “povo”.
O MTST foi formado em 1997, mas apenas em 2001 alcançou a Região Metropolitana de São Paulo. Boulos começou então a frequentar as ocupações. “Iá na Anita Garibaldi, em Guarulhos. No ano seguinte tinha a Carlos Lamarca, em Osasco. Fui percebendo o incrível potencial de rebeldia que existia naquilo, a autenticidade, a forma como o pessoal ganhava consciência política. Falei: bom, é aqui.”
Por um ano e meio morou nas ocupações, pulando de uma para outra, sofrendo despejos, bombas e balas de borracha. “Assim estou há 16 anos, na maior escola que já tive. Você quebra preconceitos, vê o mundo de outra forma. O que se aprende de valores… É muito forte”, diz ele, formado em Filosofia na Universidade de São Paulo e mais tarde psicanalista. “A fogueira de uma ocupação à noite, meu amigo, vale um ano inteiro na USP.”
Boulos foi detido três vezes pela polícia durante operações de despejo. Só na primeira recorreu ao doutor Marcos. “Depois”, diz o pai, “passou a esconder da gente pra não dar preocupação”, o que faz com que ele pense numa capivara mais extensa do que a realidade apresenta. A tática de esconder o jogo não surtiu efeito durante a violenta desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, em 2012 (o vídeo da prisão de Boulos circulou na internet e está no YouTube).
Há também duas pendengas judiciais decorrentes de sua notoriedade: um processo movido por Gilmar Mendes por causa de um artigo publicado na Folha de S.Paulo e outro pelo empresário Flávio Rocha, o dono da Riachuelo sósia de Débi (ou Lóide), em razão de um texto no Twitter. Nem tudo foram espinhos. Na militância, Boulos encontrou sua parceira, a coordenadora do MTST Natalia Szermeta, com quem vive há 13 anos. Natalia é filha do militante comunista Stanislaw Szermeta, preso pela ditadura em 1971 e hoje um entusiasta da candidatura do genro.
Se um dia Boulos subir a rampa em Brasília (cujo concreto nestes dias rachou, literal e simbolicamente), terá sido por consequência de dois momentos cruciais. Primeiro, os protestos de 2013. “Aquela velha república em que determinados assuntos estavam fora da política acabou naquele ano”, avalia Freixo, um dos principais arquitetos da candidatura.
“As mulheres não batem na porta e perguntam se podem entrar. Nem os LGBTs. Essas pautas humanitárias abrem uma porta de disputas que fazem com que o nosso entendimento de luta de classes necessite ser ampliado para um conjunto de lutas que o campo progressista nunca organizou.”
O ano seguinte, 2014, é outro instante definidor.
“Na ocasião em que o MTST se nacionalizava a conjuntura se acirrou. E passou a ser muito difícil pra qualquer movimento social ficar só no seu quadrado”, diz Boulos. “Nessa hora decidimos assumir o papel de contribuir na unidade da esquerda, impulsionando a criação da Frente Povo Sem Medo, bastante eclética em sua composição, combatendo o golpe, mas igualmente as medidas de Joaquim Levy no governo Dilma. Desse modo o MTST tornou-se um ator político. E eu também, como representante do movimento.”
Recentemente, Boulos foi procurado por Gilberto Carvalho e Gleisi Hoffmann. Teria ouvido mais ou menos o seguinte: “Não vá para o PSOL, vem com a gente, você é o sucessor natural do Lula”. Boulos acredita, porém, que o PT não tem mais condições de representar um projeto de futuro. Tampouco acredita que o PSOL assumirá esse papel.
O convite para a candidatura de Chico Alencar à Presidência já tinha sido feito ao deputado federal pelos dirigentes do PSOL. Alencar pediu para pensar. E, enquanto pensava, revela Freixo, “começou a surgir a ideia de uma candidatura que pudesse dialogar com esse outro tempo da esquerda”. Paula Lavigne ofereceu o apartamento no Rio de Janeiro para reuniões que pudessem fomentar a frente ampla de apoio a Boulos, pelo PSOL.
Despachada, saúda assim o jovem presidente do partido, Juliano Medeiros: “Chegou a turma do Malhação!” E pouco se importa se Caetano segue a declarar voto em Ciro Gomes. “O que define o sucesso dessa candidatura não é ter tantos por cento dos votos”, contabiliza Boulos, “mas sua capacidade de rearticular um campo pra pensar a esquerda brasileira nos próximos 10, 20 anos”.
No PSOL há o bloco dos insatisfeitos, mais ou menos 30% da legenda. O que incomoda é a ligação sentimental entre Boulos e Lula, cristalina no vídeo em que o ex-presidente saúda o lançamento da nova candidatura. “O impeachment, o golpe e Temer são fruto dos anos do PT. Não queremos Lula avalizando nosso candidato”, queixa-se Luciana Genro, provável candidata a deputada federal nas eleições de outubro. “Não podemos ser puxadinho do PT nem linha auxiliar de Lula.”
No PT, o tom é de afago ao melhor aliado nos protestos contra o golpe e pelo direito de Lula ser candidato. “Boulos tem grande capacidade intelectual, somada a uma enorme sensibilidade”, afirma a ex-presidente Dilma Rousseff, esforçando-se para atender este repórter durante uma persistente faringite. “É essa sensibilidade, esse sentido humano da existência, que confere grandiosidade às maiores lideranças. E Boulos é isso.”
Porém, contudo, no entanto…
“Não há viabilidade de um projeto de esquerda que não leve em conta o PT. Juntar intelectuais e promover os amigos de O Capital não cria um projeto de nova esquerda”, acrescenta. “Além disso, é preciso consciência do momento atual, em que há um golpe ainda em curso, cuja última etapa visa tirar Lula das eleições. É preciso tomar cuidado para que as várias alternativas da esquerda no primeiro turno não impeçam nossa chegada ao segundo.”
Dilma e Lula têm por Boulos um carinho quase paternal, forjado na dureza de um golpe do qual ambos são vítimas. “Não acho que o Lula ou a direção do PT vão bater em mim”, prevê Boulos, “mas vai ter gente fazendo isso – pessoas que fazem política com o fígado, com ranço, isso tem em todo lugar. Não me preocupa. Eu me forjei nos últimos 16 anos tomando pau da Tropa de Choque do Alckmin. Não é porradinha de internet do PT que vai me incomodar.”
Boulos subiu a rampa, mas nem por isso abandonou os seus princípios indumentários – o mesmo jeans de anteontem, a mesma camisa de gola do Walmart, o mesmo mocassim marrom sem o qual jamais foi visto. No dia seguinte trocou só a camisa, uma polo vermelha – sem marca, um princípio inarredável.
Agora ele está sob a lona preta de um espaço coletivo erguido na Ocupação de São Bernardo. Recebe uma delegação de estrangeiros. Com o auxílio de uma tradutora, explica como organizou com os acampados a defesa do prédio de Lula quando “paneleiros” tomaram a calçada.
Boulos agora vai subir ao púlpito erguido sobre palafitas. Daquele seu jeito entre o sindicalista e o pastor evangélico, Luiz Inácio e Silvio Santos, informa à assembleia que o governo paulista cedeu. Acabara de falar com o secretário de Habitação do estado, que oferece quatro outros terrenos em troca da desocupação. “Gastei todos os créditos do celular, mas valeu a pena. Veja bem, tem que assinar antes de comemorar, porque senão esse povo enrola a gente. Depois que assinar, aí sim, vai faltar porco pra tanto churrasco.” A multidão delira.
“Ele se preparou pra este momento. Está se preparando há 20 anos”, diz Conti. “A gente tinha 15, e eu falava lá em casa: ‘Ele vai ser uma grande liderança da esquerda’. Vai subir a rampa.”
Por Fred Melo Paiva
Fonte: CartaCapital