Vítimas do desemprego, refugiados na megaocupação
Fonte: CartaCapital
Por Claudia Belfort
As trajetórias de Manoel, Carmosina e Lucineide até o acampamento do MTST que reúne 7 mil famílias em São Bernardo do Campo e não para de crescer
O desemprego empurrou Manoel, Carmosina e Lucineide da Bahia para São Paulo. Sozinhos ou com os pais, eles migraram mais de 20 anos atrás em busca de casa, comida e trabalho. Cada um se virou como pôde. Casaram, trabalharam, tiveram filhos… Até serem atingidos novamente pelo que parece sina, mas é condição imposta e cruel: o desemprego. E outra vez se viram empurrados de suas vidas. Sem dinheiro para o aluguel ou morando de favor, acabaram em uma ocupação.
Os três baianos, que apesar do destino em comum não se conhecem, estão entre as 7 mil famílias acampadas em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. A ocupação Povo Sem Medo Planalto, iniciada em 2 de setembro, não para de crescer. Até a quinta-feira 14, era a segunda maior do País, atrás apenas da Vila Nova Palestina, na Zona Sul de São Paulo, que reúne 8 mil famílias.
No ritmo atual, a ocupação, estimam os organizadores, deve alcançar em breve a marca de 10 mil famílias. Por dia, o terreno recebe entre 300 e 350 novos ocupantes, indicados por amigos, parentes ou por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), responsáveis por organizar a ação.
O terreno, espremido entre uma fábrica de caminhões e um condomínio residencial, pertence à construtora MZM e está desocupado há 30 anos. Em 2014, a prefeitura de São Bernardo notificou a empresa pelo não cumprimento da função social da propriedade e exigiu um plano de parcelamento da terra ou de edificações, o que jamais aconteceu.
A reação da construtora à ocupação foi bem rápida e contou com rara celeridade da Justiça. Ainda no sábado 2, poucas horas depois do início da ocupação, a MZM ingressou com um pedido de reintegração de posse no plantão judicial da cidade e conseguiu do juiz Fernando de Oliveira Ladeira uma liminar autorizando a Polícia Militar a executar ordem de despejo.
“O que se costuma fazer nessas situações é encaminhar o caso para o Gaorp, que reúne as partes para negociar, mas o juiz quer uma reintegração rápida”, explica Felipe Vono, advogado do MTST.
O Gaorp, Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse, é uma iniciativa do Tribunal de Justiça de São Paulo formada por representantes do Judiciário e dos governos federal, estadual e municipal, do Ministério Público e da Defensoria Pública para tratar de casos de reintegração de alta complexidade.
Segundo Vono, diversas contendas foram discutidas pelo grupo. Ladeira ignorou, porém, a alternativa e ordenou que a área fosse desocupada em 72 horas. O movimento recorreu e conseguiu suspender temporariamente a decisão.
Quase duas semanas se passaram e a possibilidade de uma reintegração de posse assusta Carmosina dos Santos, de 63 anos, desempregada, e que, apesar de ter cumprido todos os anos de trabalho exigidos para a aposentadoria, não consegue o benefício. “Eles dizem que faltam quatro anos e meio, mas eu paguei o carnê, tudo.”
Sentada sobre uma mochila de flores lilases, sozinha numa viela entre centenas de outros barracos, Carmosina dos Santos olha para sua tenda de plástico, enquanto o helicóptero da Polícia Militar sobrevoa o terreno. A baiana enxerga na ocupação a chance de conseguir a casa com a qual sonha desde os 15 anos, quando trocou Vitória da Conquista por São Paulo em busca de trabalho.
Após a morte da mãe, por complicações no parto do décimo filho, viu-se obrigada a enviar dinheiro para o pai e os demais irmãos. Trabalhou em uma fábrica de canos, foi empregada doméstica, teve três filhos e ainda pegou mais um para criar. “Agora estou desempregada, ninguém quer idoso para trabalhar, né, fia?”
Hoje, mora de favor com a irmã em um bairro próximo da ocupação e consegue alguns trocados catando latinhas nas ruas. E faz questão de participar de todas as reuniões diárias do acampamento, iniciadas invariavelmente às 7 da noite.
As assembleias reúnem as famílias, integrantes e advogados do MTST. Os encontros ocorrem em uma espécie de pátio central, onde se localiza, por enquanto, o único banheiro da ocupação, uma barraca para o atendimento da comunidade e a cozinha coletiva, que serve diariamente 80 quilos de arroz, 20 quilos de feijão, 20 quilos de macarrão e 30 litros de café. Pão, às vezes.
A comida é preparada em um esquema de revezamento e chegam a ser necessários até dez voluntários para servir o contingente. Nenhuma refeição é cobrada, a única exigência é levar o kit sem-teto, composto de um prato, um garfo e uma colher e depois se responsabilizar por lavá-los, afirma Andreia Barbosa da Silva, uma das coordenadoras do MTST São Bernardo.
A militante, de 34 anos, aderiu ao movimento em 2013, quando se integrou à ocupação Itaquera Copa do Povo. Viúva precoce, perdeu o marido em um acidente de automóvel aos 26 anos. Desde então, vive entre o aluguel e a casa da mãe, que a abrigava sempre que a falta de emprego ou dinheiro forçava uma mudança.
Identificou-se tanto com a luta que acabou coordenadora e hoje, ao lado de outras quatro companheiras, Joana, Sandra, Mauricélia e Maria, responde pela organização da Povo Sem Medo Planalto.
As cinco mulheres administram o agrupamento de 7 mil famílias. No local é proibido consumir bebida alcoólica ou qualquer outro tipo de droga e fazer barulho após as 10 da noite. Um mutirão de limpeza é organizado diariamente. Por causa da expansão do acampamento, novos banheiros e cozinhas serão construídos. A ocupação vai ser dividida em grupos, chamados de G, a cada 400 barracos.
Cada um terá um banheiro e uma cozinha coletiva próprios. Na quinta-feira 14, a Planalto estava organizada em 16 grupos. Não há energia elétrica ou água encanada. O esgoto funciona com fossas sépticas e a água chega em galões, coletados em uma bica perto da Avenida Kennedy quando a Guarda Municipal permite.
Desde o primeiro dia da ocupação, a Guarda Municipal isola a rua que dá acesso ao terreno e dificulta a entrega de materiais e alimentos para a elaboração das refeições. Sobre o fato de viaturas estarem no local, a prefeitura não prestou informações, mas o prefeito Orlando Morando, do PSDB, posicionou-se publicamente a favor da construtora.
Em um vídeo divulgado no seu perfil no Facebook, Morando, que chegou a se “fantasiar” de guarda municipal para “caçar bandidos”, diz que não vai fugir do “problema” e que a prefeitura dará “todo o suporte necessário para que a ordem judicial seja cumprida e o terreno devolvido a seus proprietários”. O prefeito fala também em restabelecer a paz para quem mora na região.
Viver em paz com a família é o que procura o eletricista desempregado Manoel Alves Peixe, de 45 anos. “Tá difícil, minha filha, só Jesus mesmo para ter nós na causa”, diz, enquanto bate os primeiros pregos do barraco. Casado com uma cozinheira, desempregada como ele, e pai de três filhos, Peixe paga 900 reais de aluguel e não tem mais de onde tirar dinheiro.
Vive de pequenos bicos e do pouco que restou da rescisão contratual. Baiano de Senhor do Bonfim, aportou em São Paulo em 1990. Veio “só de Havaianas” para a casa do padrinho em busca de trabalho.
Casou-se aos 26 anos e nunca conseguiu casa própria. Até tentou entrar para o programa Minha Casa Minha Vida, mas foi vítima de um golpe de um corretor estelionatário que cobrava mil reais dos interessados em um imóvel.
Quem sabe Peixe venha a se aconselhar com a futura advogada, e agora sua vizinha, Daiana da Silva Araújo, de 28 anos. Casada há seis meses, ela e o marido vão trocar o quarto alugado, pelo qual pagam 350 reais, por um barraco de plástico preto onde mal cabe um colchão de casal. “Não tenho mais de onde tirar dinheiro, o aluguel vence dia 20 e a gente não tem um centavo para pagar.”
Daiana Araújo e o marido estão desempregados. De quinta a domingo, ele faz bicos em um lava-rápido, onde recebe 30 reais por dia de trabalho. Ela às vezes consegue um trabalho de faxina, às vezes de passadeira.
A renda não é suficiente para o básico, comer e morar, e, como se a situação não pudesse ficar pior, o passe livre estudantil de Daiana está 50 dias atrasado, o que praticamente a impede de frequentar a Faculdade de Direito que poderia lhe garantir um futuro mais estável. “Tenho de pedir carona para ir e voltar, senão fica difícil. Mas minha faculdade não é só uma necessidade, é um sonho.”
Necessidade e sonho resumem perfeitamente a motivação de quem participa de uma ocupação, que ganha ares de esperança quando unida aos sonhos e necessidades de outros tantos. Como ilustra Lucineide Matos, de 55 anos, há apenas 24 horas no acampamento e confiante no futuro: “Estou feliz, vai dar tudo certo. Consegui um pedacinho aqui, mas parece que estou dentro de uma mansão”.